“Muitas organizações sucumbiram nos últimos anos ao buscarem a sua sustentabilidade através de recursos para projetos, descaracterizando os objetivos pelos quais haviam se constituído”. Este é um dos argumentos apresentados pelo consultor Arnaldo Motta ao analisar a tendência à profissionalização nas organizações sociais
Impossível ficar indiferente diante do crescimento do número de fundações privadas e associações sem fins lucrativos – FASFIL, no Brasil, a partir dos anos 90. Os números do relatório do IBGE sobre o assunto são expressivos e provocantes, apesar de ressalvas feitas ao documento. A peculiaridade da publicação não está no fato de trazer algo desconhecido do público. A sua contribuição está na base de dados confiável e nos critérios claros e objetivos. A constatação do crescimento do campo estudado pelo relatório não é propriamente uma novidade, constituindo-se em consenso não só entre aqueles que se dedicam às pesquisas na área. Mesmo entre estes, alguns vêm se debruçando sobre o fenômeno, antes até da publicação do documento citado.
Três fatores têm sido associados ao fato de 62% das FASFIL hoje existentes no Brasil terem sido criadas a partir dos anos 90. Um deles é o fator político, com a restauração da democracia e a promulgação da constituição de 1988 que possibilitou novas formas de organização da sociedade. Outro é o fator econômico com a implantação dos princípios neoliberais – abertura de mercado, privatizações, diminuição do Estado – e o redirecionamento do foco de agências financiadoras que provocaram o surgimento de novos atores e novas propostas para lidar com problemas de cunho social. Existe, ainda, o fenômeno da globalização que contribuiu para a ampliação do debate sobre diversas questões, entre elas aquelas relacionadas às causas sociais.
Em paralelo à diminuição do Estado em diversas áreas, tivemos a ampliação da ação do setor privado que, entre outras coisas, passou a encarar com novos olhos o campo social. Este, ao mesmo tempo, necessitava de novos caminhos para se adequar às mudanças com as quais se deparou.
Um aspecto que aparece intrinsecamente relacionado ao panorama apresentado é o incremento de investimento privado no setor social, componente importante na emergência do que tem sido designado como Terceiro Setor.
A relação entre o crescimento do número de instituições voltadas para a área social e o aumento do investimento privado em ações de caráter social pode parecer paradoxal. Ao menos quando se tem em vista que diversos problemas dos quais se ocupam as ações do Terceiro Setor podem estar ligados às conseqüências relacionadas às formas de atuação das empresas privadas em direção ao seu principal objetivo que é a geração de excedentes financeiros.
O paradoxo, entretanto, é apenas aparente.
Como foi dito, tivemos, nos anos 90, um movimento peculiar na economia através do processo de privatizações de empresas estatais, uma das estratégias da política econômica vigente, para abrir novas frentes de investimento ao capital privado, nacional e internacional. Neste período, o setor empresarial adentrou em áreas de infra-estrutura, até então exclusivas do Estado. Lembremos o quanto, nos anos 90, a mídia veiculou conteúdo sobre a precariedade do setor estatal em fazer cumprir a sua função de investimentos em comunicação e transportes, só para falar de dois exemplos que viveram intensamente o processo de privatização.
Vimos, porém, como o avanço do setor privado não se restringiu a este terreno. O setor social também passou a ser visto como uma possível área de investimento. Reportagens sobre as precariedades da telefonia ou de nossas estradas eram lidas, ao mesmo tempo em que a fragilidade das organizações sociais era apresentada com discurso semelhante, quase sempre acompanhado de propostas sobre como cuidar de tal situação. Parte destas “soluções” surgiu ao lado da oferta, cada vez mais intensa, do capital privado para o financiamento de ações com caráter social, processo que não se restringiu apenas ao aporte de recursos financeiros. Chegaram, também, diversos ditames da cultura empresarial que, dentro da sua lógica, busca tirar o máximo proveito do seu investimento. Um destes é o da profissionalização, um dos conceitos que tem estado presente dentro da estruturação do chamado Terceiro Setor.
O termo, segundo o “Aurélio”, significa “dar o caráter de coisa profissional a” designando profissão como “atividade ou ocupação especializada, e que supõe determinado preparo; meio de subsistência remunerado, resultante do exercício de um trabalho, de um ofício”.
A tradução da expressão no terceiro setor tem se dado como: implementação de ferramentas de gestão, construção de modelos replicáveis, sustentabilidade, atuação através de projetos etc., aspectos que, muitas vezes, se apresentam com a premissa de que a área social precisa aprender com o setor privado a fim de imprimir maior efetividade em sua atuação.
De fato é possível observar diversas instituições que obtiveram ganhos com mudanças apontadas pela profissionalização, como as que, por exemplo, alcançaram melhor aproveitamento dos recursos, ganho de qualidade no atendimento prestado, incremento no contato com instituições congêneres, ampliação das ações na comunidade, melhorias no espaço físico disponível, maior satisfação da equipe etc.
Muitas organizações, no entanto, sucumbiram nos últimos anos ao buscarem a sua sustentabilidade através de recursos para projetos, descaracterizando os objetivos pelos quais haviam se constituído. Houve da mesma forma, inúmeras equipes desfeitas para satisfazer as exigências de um novo perfil profissional, ou ainda grupos que se afastaram das comunidades locais em que atuavam perdendo suas raízes de origem.
As instituições que morreram ao passar por tal processo não estariam preparadas para as mudanças causadas pelo quadro político-econômico dos anos 90, diriam alguns. Outros acrescentariam que as alterações efetivadas não foram bem conduzidas. Tais argumentos apenas reforçam o diagnóstico que pautou a implementação do modelo proposto, fechando a questão sem estimular a reflexão diante de uma situação que pode ser mais complexa.
Pode-se levar a conversa adiante e perguntar: será que a profissionalização das instituições sociais é um caminho obrigatório para a melhoria de sua atuação?
O fato de existirem organizações que se perderam nesse processo responde por si a pergunta: não, a profissionalização não significa necessariamente um ganho para aquelas que vivem tal processo. Mas, então, não é verdade que as instituições sociais têm o que aprender com a cultura empresarial? Esta pode ser uma conclusão prematura, inclusive por que é possível observar ganhos consideráveis neste sentido.
Devemos ter clareza de que estamos discutindo um fenômeno recente e que ainda não está sedimentado no cenário das organizações sociais do Brasil. Mesmo assim podemos avançar um pouco mais nesta reflexão. Uma possibilidade neste sentido seria indagar a respeito de possíveis peculiaridades presentes tanto nos percursos positivos, quanto nos que resultaram em perdas para as organizações que percorreram este caminho.
O que determinou o processo de profissionalização? A quem interessava tal tipo de encaminhamento? Como ele foi introduzido? Que tipo de necessidades pretendia dar conta? Quem esteve envolvido em sua implantação? Que tipo de reações o processo provocou nas pessoas envolvidas? Que tipo de leitura se fez do que estava ocorrendo? Como tais informações foram encaminhadas? Os resultados obtidos estavam de acordo com o esperado? O processo teve continuidade?
Se olharmos para o tipo de perguntas listadas, veremos que a maior parte delas busca avaliar a pertinência da chamada profissionalização, tendo em vista o processo em que a mesma se deu, de modo a localizar especificidades de contexto, percurso e agentes envolvidos. Ao direcionar a reflexão neste caminho propõe-se olhar a profissionalização não como algo em si, mas como uma ferramenta que tem suas especificidades e serve a determinado fim.
Pensar a profissionalização das organizações sociais sem a devida crítica, e buscar, desta forma, determinar se ela é positiva ou negativa para o panorama das organizações, traz o risco de cair em um redutivismo empobrecedor.
Afirmar que as instituições que atuam na área social devem aprender com as empresas, não quer dizer que elas precisam se tornar empresas, como querem alguns entusiastas com as possibilidades de aplicação de instrumentos forjados na administração empresarial. A discriminação de cada campo, como tem sido feita, inclusive, por alguns ligados a agentes financiadores privados, é importante para evitar outro risco presente neste debate como o de se voltar, simplesmente, contra o fato de que uma organização social possa se beneficiar de conhecimentos produzidos no setor privado. Ou seja, tentar julgar o fenômeno da profissionalização como algo em si leva, apenas, à superfície da questão. Uma intervenção deste tipo deve ser analisada dentro de uma ótica que veja a instituição a partir do seu processo de desenvolvimento. Mas o que vem a ser isso?
Desenvolvimento institucional é o processo rumo ao melhor aproveitamento das potencialidades que uma organização possui para fazer cumprir o seu papel na sociedade, levando-se em conta tanto a experiência e a realidade interna da instituição, quanto o momento histórico e o meio em que atua.
Olhar a profissionalização dentro de tal perspectiva implica em pensar de maneira mais complexa e tratar cada situação sem privilegiar qualquer aspecto específico em detrimento aos demais. Busca-se, desta forma, uma abordagem que não está focada em um produto final, mesmo que este seja um elemento importante. Muito menos, ainda, pretende-se privilegiar o recurso financeiro, ainda que este deva receber todo o cuidado e atenção para a sua boa utilização.
Abordar a profissionalização das organizações sociais dentro da perspectiva de desenvolvimento resulta em maior consciência sobre o que é mais adequado em cada momento específico. Esta postura crítica não exclui nem aceita qualquer possibilidade a priori, apenas escolhe o que lhe parece apropriado.
A experiência tem oferecido diversos exemplos de organizações que viveram crises profundas em função do recebimento de recursos de origem questionável, alheia ao setor social. Algumas tiveram a coragem de fazer uma autocrítica. Infelizmente nem todas. Tais episódios, no entanto, reforçam a importância de uma reflexão consciente sobre as ofertas de financiamento quase sempre acompanhadas de “respostas” para o setor social.
Assim, dentro do panorama de crescimento que as organizações sociais vêm apresentando em nosso país nos últimos anos, parece ser aconselhável aproveitar os conhecimentos produzidos em outras áreas. É fundamental, entretanto, que os mesmos possam estar não só a serviço do aumento dos números apresentado pelo relatório do IBGE, mas também estejam a serviço do desenvolvimento desta área cuja transformação tem sido intensa vem assumindo um papel cada vez mais relevante na busca de alternativas para diversos problemas e desafios do mundo atual.