Após anos de compreensível ausência, voltaram a ganhar muito fôlego no debate público internacional as críticas ao PIB como medida de progresso socioeconômico. Mas são quase tão antigas quanto a própria contabilidade nacional, e os profissionais da área jamais deixaram de advertir sobre as limitações dessa medida como indicador de prosperidade. Essencialmente por se restringir às atividades econômicas que envolvem transações monetárias. O que o faz sofrer de duas graves doenças congênitas: a) como agregado monetário, não abrange dimensões das atividades humanas que não sejam avaliadas pelos mercados, inclusive as distributivas; b) como medida de fluxos produtivos, também despreza todos os impactos das atividades humanas sobre estoques, com realce para os de recursos humanos e naturais.
Está no parágrafo o conteúdo das nove linhas que abrem o documento que serviu de base à primeira reunião da chamada Comissão Stiglitz, ou “Comissão sobre a mensuração do desempenho econômico e do progresso social” (CMDEPS). Trata-se de uma exposição de todas as outras medidas do progresso socioeconômico já propostas, que se baseou em cinco levantamentos similares feitos nos três últimos anos. Verdadeira pérola, já disponível no site da Comissão, junto com a histórica ata de seu primeiro encontro: www.stiglitz-sen-fitoussi.fr.
A partir da décima linha, esse “Survey of existing approaches to measuring socio-economic progress” enfatiza que o maior impulso para a proliferação de novos índices ocorreu na virada para os anos 1990, quando simultaneamente brotaram as noções de “desenvolvimento humano”, “desenvolvimento sustentável” e “pós-desenvolvimento”. Claro, sem deixar de mencionar o pioneirismo de duas contribuições de 1973: parceria Nordhaus-Tobin e Conselho Econômico do Japão. E de atribuir o desprezo de que foram vítimas às subseqüentes alarmantes taxas de desemprego e estagflação que só poderiam ter reforçado a maximização do aumento do PIB como alvo supremo de qualquer estratégia política realista.
Depois de recapitular as várias medidas de renda nacional viabilizadas pelo atual sistema de contas, o documento separa em quatro categorias as 28 novas propostas encontradas: 15 de organizações internacionais e 13 de iniciativas acadêmicas ou nacionais. Primeiro, os casos de painéis (“dashboards”), cuja utilidade prática tende a ser inversamente proporcional ao número de indicadores incluídos. Depois, as três correntes de tipo sintético: a) correções e extensões do PIB; b) índices compostos estimulados pela metodologia do IDH; e c) abordagens de caráter subjetivo.
Todavia, por mais que se avance nos dois últimos rumos, isso em nada contribuirá para a superação dos problemas do PIB. Claro, são importantíssimos quase todos os índices compostos que surgiram na esteira do IDH, mas para evidenciar as distâncias e contrastes entre anseios sociais, que são fins, e o desempenho econômico, que é um dos meios de atingi-los. Na mesma linha, as abordagens de caráter subjetivo jamais permitirão que se dispense a mensuração objetiva do desempenho econômico, por mais que também tenham esse dom de evidenciar que melhoria da qualidade de vida não é decorrência linear de aumentos da produção.
Por isso, ao não colocar toda a ênfase na necessidade de se medir de outra forma o crescimento econômico, o excelente “Survey” contribui para diluir o significado da missão assumida pelos eminentes 27 membros da CMDEPS: abrir caminho para que os problemas do PIB venham a ser superados por nova medida de desempenho econômico que não mais se restrinja a atividades mercantis, nem ignore a sustentabilidade. Pior: nem esclarece que está na precificação o calcanhar-de-aquiles de todas as tentativas de se reformar o PIB.
Serão sempre passíveis de suspeição os expedientes utilizados para se atribuir cifras monetárias a custos e benefícios sociais que não sejam mercantis, assim como a amortizações relativas a depreciações de estoques de recursos humanos e naturais. Se esse for o caminho, com certeza ele exigirá uma imensa lista de intrincadas convenções, muitas vezes maior do que as que foram necessárias para se consolidasse o atual sistema de contas nacionais. E parece inatingível a via inversa, de adoção de alguma unidade de medida para a qual possam ser convertidos valores monetários definidos por mercados.
Esse obstáculo mostra quanto será complicada e demorada a superação dos problemas do PIB, por mais que aumente o clamor social contra suas duas perversões congênitas realçadas na abertura deste artigo. Na verdade, o que hoje está sendo cada vez mais apontado como suas principais deficiências foi justamente o que permitiu o surgimento de uma maneira bem razoável de se avaliar a capacidade que tem uma nação de pagar por uma guerra.
Esta última assertiva causará surpresa, pois todos os manuais e cursos de introdução adocicam a história das contas nacionais. No entanto, foi a inevitabilidade do combate ao nazismo que engendrou um razoável método de organizar a contabilidade nacional. Seus fundamentos, que depois exerceram imensa influência na padronização do sistema, estão em dois relatórios com finalidades exclusivamente bélicas. O primeiro foi redigido em 1939 pela parceria de Keynes com seu então discípulo Richard Stone. O segundo, em 1941, por um ex-aluno de Simon Kuznets que divergiu do mestre e se tornou o primeiro chefe da contabilidade nacional dos EUA, Milton Gilbert.
Em suma: concebido para avaliar capacidade bélica, o PIB é o avesso daquilo que poderia ser uma medida de sustentabilidade, anseio que só começou a ser formulado meio século depois, e em conjuntura das mais peculiares: a calmaria abortada pela explosão das Torres Gêmeas, que havia iniciado com o desmonte da Guerra Fria. Então, o mais provável é que, enquanto não houver paz, o PIB permaneça muito mais útil e adequado do que qualquer concorrente que pretenda valorizar trabalho doméstico/voluntário e amortizar depreciações de recursos socioambientais.
*José Eli da Veiga é professor titular do departamento de economia da FEA-USP, pesquisador associado do Capability & Sustainability Centre da Universidade de Cambridge, e co-autor do livro para jovens “Desenvolvimento sustentável: que bicho é esse?” (Autores Associados, 2008).
Fonte: Instituto Ethos – 08/09/2008