Ao final da Conferência Internacional Ethos 2008, Ricardo Young, presidente do Instituto Ethos, e Paulo Itacarambi, vice-presidente executivo, avaliaram os debates que aconteceram em torno do tema “Mercado socialmente responsável – uma nova ética para o desenvolvimento”.
Nesta conversa com os jornalistas Fátima Cardoso, Adalberto Wodianer Marcondes e Luciano Martins Costa, eles contam por que é preciso repensar os valores da sociedade e qual deve ser a atuação das empresas e de seus líderes no caminho do desenvolvimento sustentável. E explicam, também, por que uma empresa que só tem o lucro como objetivo está ultrapassada.
Adalberto Marcondes: Ricardo, qual é sua avaliação da Conferência 2008? Houve um salto do ano passado para cá, algo mudou no Instituto Ethos?
Ricardo Young: Esse salto vem sendo dado desde 2006, quando fizemos a conexão da responsabilidade social com o desenvolvimento sustentável. Aquele manifesto (Manifesto pelo Desenvolvimento Sustentável) começou a pautar toda a nossa ação de responsabilidade social orientada para uma visão de desenvolvimento sustentável. Na prática, o que significa isso? Que a nossa visão sistêmica passou a ser orientada a partir dos valores da sustentabilidade. Acho que algumas coisas mudaram no Ethos, sim, como a forma como temos conversado com a sociedade civil organizada, com a academia e com as áreas de inovação tecnológica. Acho que as empresas estão compreendendo melhor a importância estratégica da gestão socialmente responsável.
Luciano Martins Costa: O Ethos está saindo de uma posição de elaborar indicadores, de fazer diagnósticos, para uma posição de partir para a mudança, e isso apareceu na Conferência. Isso implica uma mudança da linguagem e de como vocês vão conversar com o mercado. Não existe o risco de criar mal-entendidos ou de assustar certo players do mercado? Estou me referindo diretamente à questão que o Paulo colocou no final de um debate, quando disse “será que não estamos com tudo isso ajudando a preservar o modelo de capitalismo”?
Paulo Itacarambi: Nós estamos vivendo um momento, que chamo de virada de página, que é de colocar as efetivas mudanças internas para as empresas. Qual deve ser o foco das empresas: fazer pequenos projetos, mudar alguns aspectos da gestão ou repensar o negócio? O que está aparecendo nas várias discussões é a necessidade de que o âmago do mercado comece a ser uma força que tensione as empresas para repensar o negócio. Com isso, quero dizer o seguinte: na hora em que ficou mais claro que a responsabilidade da empresa é fazer a gestão sustentável do seu negócio, ficou claro que a empresa só vai contribuir com a sociedade se a sociedade tiver uma estratégia de desenvolvimento sustentável, e se os negócios estiverem alinhados com essa estratégia de desenvolvimento sustentável. É nesse sentido que eu estava colocando a minha dúvida no debate. Nós dizemos que a mercantilização das relações é um dos elementos que tem contribuído para a insustentabilidade, porque estamos perdendo os valores que dão coesão à sociedade, e estamos construindo desigualdades na economia. Será que, se nós trabalhamos a mudança através das empresas, isso não está aumentando a mercantilização? O que pode resolver esse dilema é a mudança do próprio negócio, da visão do que passa a ser negócio, de quais necessidades da sociedade passamos a atender.
Ricardo: Acho que somos vítimas de uma forma muito obsoleta de ver o mundo, que nos impede de entender o novo. Por exemplo, o Muhammad Yunus (fundador do Grameen Bank e Prêmio Nobel de Paz em 2006) fala que a empresa não precisa necessariamente ter como objetivo o lucro, mas isso não tira da empresa a genialidade que ela representa enquanto capital de conhecimento e de processos para realizar coisas. Tudo o que passa pela empresa não necessariamente será mercantilizado. Há uma tendência de acharmos que aquilo que é apropriado pela empresa e pelo mercado necessariamente perde a sua alma, porque se coisifica. O que eu começo a perceber é que cada vez menos as coisas que se coisificam têm significado para as pessoas e para a sociedade. As empresas, portanto, vão precisar, cada vez mais, dar às coisas um significado que vá além do usufruto material daquele produto. E nós começamos a ver um outro tipo de empreendedorismo. Estive recentemente com dois grupos de jovens, cada um com sua pequena empresa social, não necessariamente ONGs, que se reúnem em galpões e compartilham serviços comuns de gestão e tecnologia. O elemento fundamental para o sucesso das suas empresas é aquele networking que eles estão fazendo entre si, embora cada um tenha um projeto completamente diferente um do outro. Conversando com esses empreendedores, perguntei: “por que vocês estão fazendo isso”? Eles responderam: “porque a gente não se encaixa mais no mundo típico de trabalho. A gente não consegue mais entender nossa vida fragmentando o nosso potencial e a nossa capacidade dentro de uma empresa convencional, então estamos procurando empreender o nosso potencial através de empresas”. Mas, a empresa tem outro objetivo que não simplesmente o lucro. Acho que esses são alguns padrões que não cabem nas ideologias que somos condicionados a perceber. A visão tradicional da interpretação do mundo, seja marxista ou liberal, não capta essas sutilezas que redefinem a própria natureza da empresa, do empresariado, do ser empresário, do ser trabalhador, do ser consumidor.
Paulo: Na hora em que a empresa socialmente responsável assume como propósito produzir retorno para todos os que são afetados por suas atividades, entram novas dimensões na história. Uma delas é a economia da cooperação: é você começar a trabalhar não necessariamente pela competição, mas trabalhar pela cooperação, onde o resíduo de um é a matéria-prima do outro. Essa economia da cooperação existe na natureza. Na hora em que nós tivermos essa sincronicidade, realmente surgirá outro conceito. Esse outro conceito é: o objetivo da empresa não é ter lucro. Isso quebra o paradigma. O lucro é necessário para empresa realizar seu objetivo, mas o objetivo da empresa – usando a frase que o filósofo Mario Sergio Cortella disse em um dos debates – é engrandecer a vida, não apequenar a vida. É criar condições para as pessoas se realizarem e realizarem suas potencialidades.
Ricardo: Não é o mercado a serviço das empresas, mas as empresas a serviço das pessoas. As pessoas, a comunidade, a sociedade sustentável se apropriando dessa invenção incrível que é a empresa, mas a serviço do engradecimento das pessoas, e não do apequenamento e da fragmentação delas. Essas novas modalidades de que o Paulo falou – a economia da cooperação, o comércio justo, a economia solidária onde as coisas não precificadas são recursos no processo da economia -, são conceitos novíssimos que estão dando um sentido completamente diferente à empresa. Acho completamente antiquado discutir empresa lucrativa e não lucrativa. O lucro é por definição uma decorrência de organizações empresariais. A diferença é que lucro em organizações com objetivo social é o necessário para a manutenção do sistema e do processo, não é a finalidade em si – a finalidade é a missão, é a realização concreta na sociedade ou no mercado. Nas outras, o objetivo é o lucro. Então, tudo se subordina a esse objetivo maior, enquanto nessas empresas com objetivo social tudo se subordina à missão maior.
Paulo: É interessante que isso se liga a discussão histórica. Quando caiu o muro de Berlim (em 1989), qual foi a promessa do mercado? Que o mercado é capaz de produzir o bem-estar social. Mas, enquanto entendermos o bem-estar social como um bem-estar individual conseguido por meio de mercadorias e de serviços, não teremos um bem-estar social. O próprio mercado, quando faz essa promessa, gera essa demanda da sociedade: “então produzam o bem-estar social”. Para produzir esse bem-estar social, é preciso mudar. E são essas mudanças que estamos discutindo.
Ricardo: Aproveitando para emendar: o neoliberalismo faliu. E por que o neoliberalismo faliu? Exatamente pelo que o Paulo falou: que o mercado disse “olha, o Estado não promove bem-estar social, o Estado é burocrático, ele drena os recursos da sociedade, o welfare state é ineficiente, o mercado é mais eficiente na alocação desses mesmos recursos para o bem-estar da sociedade”. Acontece que essa assunção de bem-estar é completamente equivocada, porque ela parte do princípio de que o mercado abastecer a população de produtos baratos, e de forma abundante, é o significado de bem-estar social. Esse modelo faliu.
Luciano: Mas esse modelo nem chegou a existir, porque o próprio discurso é falso. Se algum país alcançou o status de neoliberal, foi em função do protecionismo de Estado, para proteger setores que são a base da economia. Não existe nenhum país onde se pratica a chamada economia neoliberal que tenha a economia realmente liberal.
Paulo: Além disso, o conceito de criar o bem-estar por meio da abundância é totalmente equivocado, porque nós não temos essa possibilidade. A abundância, na verdade, é desperdício. Porque a gente produz, para algumas pessoas, muito mais do que é necessário, isso vira resíduo inaproveitável, e os outros não têm acesso a isso. Aí tem uma questão ética: o que de fato é a necessidade e o que são desejos transformados em necessidades? O que de fato o mercado promete e não entrega? Uma base da violência social que existe hoje é porque as pessoas não têm acesso a bens materiais reais. Mas, tem uma outra base da violência que é simbólica, porque as pessoas não têm acesso ao simbólico que é prometido nos produtos. O cara gostaria de ter uma carro para ter a companhia das belas mulheres que fazem a propaganda do carro. Mas ele não tem nem o carro, nem as companhias. Ele não é nem incluído nem pode ter o sentido de pertencimento. Aí está a questão ética central: como mudar isso? Se nós continuarmos pensando que bem-estar social se consegue por essa abundância, não vamos atingi-lo. O conceito de bem-estar, o conceito de qualidade de vida e o conceito de sucesso precisam ser revistos.
Ricardo: Se é verdade que o mercado liberal tradicional não entrega o que prometeu, e que as empresas estão começando a ter de se reinventar para o desenvolvimento sustentável, não é menos verdade que o Estado terá de se reinventar. Todo o mundo capitalista que foi organizado na base de Estados nacionais, e de organismos multilaterais que se representam por meio de governos nacionais, vai começar a dar lugar a processos globais sem nação, que são os movimentos da sociedade civil organizada, ou a Estados nacionais que não conseguem expressar as demandas da suas próprias populações ou territorialidade. O capitalismo, por bem ou por mal, vai passar por um redesenho profundo. Não sei se, no final do século XXI, vamos chamar o sistema de distribuição de bens e serviços de capitalismo. O país mais bem-sucedido no capitalismo hoje é um país não democrático: a China. A China representa a aceleração extrema da agenda capitalista, e a aceleração extrema da agenda capitalista representa uma sociedade insustentável, que sustenta a insustentabilidade e a coerção do Estado. Esse é o modelo? Obviamente, não é o modelo. Vamos ter de repensar formas inteiramente novas de governo, não só de empresas e de mercado. Discutimos aqui o mercado sustentável, mas talvez, daqui a pouco, vamos ter de discutir modelos de governo que possam permear uma sociedade sustentável.
Fátima Cardoso: Vocês falaram de uma nova cultura para a sustentabilidade, de um novo mundo. As empresas irão liderar esse processo de transição para um novo mundo ou irão a reboque de outras instituições?
Paulo: Nós sempre trabalhamos com o seguinte raciocínio: você precisa estimular a liderança da empresa, a partir daí ela lidera por uma questão de interesse e por engajamento das pessoas. E só continua nesse processo se houver a demanda e a pressão da sociedade. O avanço real requer uma demanda real de mercado, e o início desse avanço requer um processo de liderança. Uma coisa realimenta a outra. O Ray Anderson (fundador da InterfaceFlor, empresa símbolo da gestão sustentável) começou pela demanda do cliente, porque o cliente para ele é o centro. Mas, como ele de fato conseguiu mudanças reais? Com o envolvimento do seu pessoal, com o envolvimento emocional das pessoas que trabalham com ele, e com uma permissão muito clara de que as pessoas poderiam criar e errar. Isso possibilitou o avanço. Por isso é que estávamos discutindo nessa conferência o mercado socialmente responsável. É o mesmo raciocínio: você precisa de algumas empresas que liderem, mas essa liderança vai até um determinado limite, ela avança um pouco, mas não se desgarra. Então, é preciso que o mercado todo crie condições para a coisa acontecer. Nossa discussão hoje é se estamos virando a página. Para as empresas continuarem avançando, é necessário que se traga a base para um outro patamar. E, para trazer a base a um outro patamar, é preciso ter mecanismos muito claros e específicos, tanto de regulamentação quanto de práticas de mercado de auto-regulação. Senão, o conjunto não avança.
Luciano: O Ray Anderson é um homem comum, não tem qualidade de oratória, não tem aparência nem postura de líder. Ele provocou um processo inovador tremendo sem mexer na estrutura hierárquica da empresa. Isso traz algumas lições interessantes para quem está fazendo grandes mudanças achando que precisa contratar o Super-Homem para ser o diretor financeiro, ou a Mulher-Maravilha para ser diretora de recursos humanos. Não é uma lição interessante observar o Ray Anderson?
Paulo: Tem um conceito fundamental nessa história, que eu uso e que o Ray Anderson disse na sua palestra: “quem faz os líderes são os liderados”. Não existe um líder se as pessoas não delegam ao líder a condução. O Ray Anderson expôs as propostas, as pessoas as abraçaram e o incentivaram para que ele continuasse. Dentro desse conceito há essas características de que você está falando. Não precisa de um Super-Homem, basta que se coloque um propósito e que haja um conjunto de pessoas que o abrace.
Ricardo: E ele não tem essas características que podemos chamar de características convencionais esperadas de líder tradicional, mas tem outras, que são tão ou mais poderosas do que essas. A primeira delas é uma clareza de que o poder que ele detém é um poder para servir. Ele não detém o poder para si, o poder que ele tem está a serviço seja dos clientes, seja dos liderados, seja de um processo de mudança. Segunda característica: absoluta clareza dos valores que ele quer perseguir, e humildade em persegui-los. Porque ele começou a persegui-los a partir do momento em que ele se conscientizou ignorante, por exemplo, na área ambiental. Ele teve humildade de reconhecer isso e passou a buscar soluções de forma contínua, persistente, quase obsessiva. O terceiro ponto, que foi fundamental, é que ele é uma pessoa absolutamente franca e transparente, o que elevou o nível de confiança e do engajamento de todos os que trabalharam com ele na mudança. O principal combustível para a mudança não é a autoridade, não é o exercício do poder. O principal elemento de liderança é a capacidade de tocar cada uma das pessoas e de galvanizar as pessoas em torno de alguma coisa que tenha significado para elas, e elas se sentirem parte de uma mudança maior. O Ray conseguiu mostrar para seus funcionários, para seus colaboradores, que eles estavam engajados em uma coisa maior. E ele não prometeu isso no curto prazo, ele não disse que era para amanhã, que o mercado iria premiá-los por causa disso. Ele não disse que a empresa iria se valorizar mais, ou menos, que iria abrir o capital. Esses elementos são importantes porque mostram quais são os elementos da nova liderança que podem nutrir o conceito da nova empresa de que estamos falando. E que estão muito menos ligados aos componentes tradicionais. Esse líder é o cara que desperta o coletivo. Ele é capaz de tocar a mente e o coração das pessoas de forma que o coletivo se desperte e se reorganize em torno de uma nova visão.
Fonte: Instituto Ethos
Data: 10/06/2008