*José Eli da Veiga
É cada vez maior o número de empresas que assumem suas responsabilidades socioambientais (RSA). A tendência é mundial, mas particularmente intensa e animadora no Brasil,por mais que possam ser apontadas dubiedades, incoerências e oportunismo. São positivos mesmo casos extremos, como os denunciados em www.propagandasustentável.com.br, por terem discursos de RSA são puras maquiagens. É que clientes,financiadores, funcionários e até fornecedores dessas empresas certamente serão alertados e pressionarão seus dirigentes. Poderá demorar, mas um dia os manda-chuvas se verão tangidos a levar o assunto a sério.
Também é comum que as dificuldades objetivas da ética empresarial só se evidenciem depois da primeira atração pela RSA. Uma genuína atração fatal, que só não produz mais rápidas conversões devido à relutância da mídia em ter atritos com grandes anunciantes e patrocinadores. Como a responsabilização socioambiental só avança se houver pressão dos consumidores e da opinião pública, nada pode ser mais decisivo do que fazer com que deslizes e tropeços sejam conhecidos por leitores, ouvintes e telespectadores.
Caso emblemático é o da campanha lançada pelo Carrefour em fevereiro, que tem por mote a expressão popular “usar a cuca”. Em imensos encartes, os jornais divulgaram algo como”os dez mandamentos de quem usa a cuca”. Como o décimo conclama os consumidores a preferirem “empresas comprometidas com o desenvolvimento sustentável”, alguém disparou uma mensagem à sua rede perguntando se seria para rir ou para chorar. Deveria ser comemorado o fato de o tema do desenvolvimento sustentável ter sido incluído? Ou, ao contrário, seria deprimente vê-lo em último lugar?
Respostas simétricas foram dadas por quem identificou alguma razão de contentamento e por quem já tinha motivo anterior para cuspir fogo contra práticas do Carrefour. O mais interessante, contudo, foi o alerta da redação do portal Eco-Finanças, mantido pela ONG Amigos da Terra – Amazônia Brasileira (http://ef.amazonia.org.br/). Avisou que o Carrefour é cúmplice dos escusos e revoltantes negócios de boiadeiros amazônicos, o principal vetor de desmatamento, como mostra o estudo “O Reino do Gado”, de Roberto Smeraldi e Peter May (presidente da Sociedade Internacional de Economia Ecológica,ISEE). Duas semanas depois, em carta assinada pela gerente de comunicação externa, o Carrefour garantiu que “cumprirá o que a lei determinar”.
Não pode haver melhor confirmação de que uma empresa está bem longe de assumir a RSA do que usar em sua defesa uma declaração sobre seu óbvio dever de cumprir a lei. É um sinal de predileção por aquilo que se conhece por “relativismo ético”. Em vez de adotar princípios a serem seguidos pela corporação em todo e qualquer lugar, os executivos são orientados a cumprir as leis locais, mesmo que freqüentemente, elas sequer garantam respeito a elementares direitos humanos, para nem falar da proposta de desenvolvimento sustentável. É pena, portanto, que esse caso não chegue aos jornais, rádios e televisão, pois incentiva o braço brasileiro do Carrefour a manter padrão de conduta socioambiental infinitamente mais baixo do que o seguido na Europa.
Evidentemente, o que não falta no Brasil são comportamentos análogos, e até piores, praticados por grandes empresas que poderiam parecer estar acima de qualquer suspeita, mas que se revelariam inescrupulosas caso não fossem blindadas pelo generalizado temor da mídia. Dois exemplos são TAM e Telefónica. Qualquer passageiro freqüente que tenha se sacrificado em não viajar por alguma das concorrentes da TAM, com certeza se sentiu trapaceado, além de arrependido,quando se deu conta dos inúmeros obstáculos criados pela empresa para a obtenção de bilhete prêmio, ou de “upgrade”. Ou mesmo surpresas ainda piores no check-in de vôo internacional. Da mesma forma, qualquer cliente da Telefónica que tenha tentado suspender temporariamente um serviço como o “Speedy”, em razão de ausência prolongada,certamente se sentiu vítima de uma das mais cínicas formas de desonestidade quando isso lhe foi negado.
Se empresas desse calibre não respeitam sequer regras comezinhas de bom tratamento de seus melhores clientes (que subscrevem programas de fidelidade, ou assinam contratos draconianos), como se pode imaginar que venham a adotar posturas éticas muito mais complexas, que incidam sobre seu relacionamento com a coletividade? Como se pode achar que o recurso a um suposto compromisso com “desenvolvimento sustentável” não passe de pura cortina de fumaça?
A boa notícia é que, embora muitas adesões à RSA sejam mesmo conversa pra boi dormir, a experiência internacional vem indicando que, por várias razões, mesmo empresas como as do trio acima citado serão levadas a assumir de verdade suas responsabilidades socioambientais. O processo poderá ser longo se a mídia continuar tão medrosa, dificultando que a opinião pública as pressione. Mas também não é menos certeza de que ficará cada vez mais difícil a estabilidade de empresas cujos dirigentes continuem iludidos de que podem simplesmente jogar, blefar, ou brincar com a ética.
Sinal dessa tendência foi a recente correria entre as maiores empresas globais. Uma virada que pode ser facilmente constatada por simples comparação de dois relatórios especiais que em lapso de três anos foram produzidos pela revista “The Economist” (Janeiro de 2005 e de 2008) sobre CSR (Corporate Social Responsability). O primeiro tinha sido bem relutante e cético sobre o significado e a consistência do fenômeno, além de sarcástico sobre o que lhe parecia uma moda passageira. O segundo, ao contrário, chega a considerar”quase impensável que alguma empresa global não tenha uma política de CSR”. Que o diga a senhora Hannah Jones, atual vice-presidente de CSR da Nike, empresa que precisou mudar da água para o vinho depois da crise pela qual passou nos anos 1990, provocada pela acusação de ser leniente com trabalho infantil.
*José Eli da Veiga é professor titular do departamento de economia da FEA-USP e pesquisador associado do “Capability & Sustainability Centre” da Universidade de Cambridge, com apoio da Fapesp. Página web: www.zeeli.pro.br
Data: 28/03/2008
Fonte: Valor Econômico