A economista, ativista e futurista Hazel Henderson, que escreve para mais de 250 jornais no mundo inteiro, é uma das principais porta-vozes dos movimentos sociais que criticam o sistema econômico atual. Autora de livros como Além da Globalização e Cidadania Planetária, Hazel fala de uma economia do amor e defende a inclusão de critérios de qualidade de vida para calcular a riqueza das nações.
No Brasil, o Instituto Vivendo Valores (IVV), presidido pelo consultor australiano Ken O´Donnell, abriu espaço para o diálogo sobre valores humanos dentro das organizações. Com base na filosofia da Brahma Kumaris World Spiritual University (BKWSU), organização não-governamental internacional cujo objetivo é ajudar indivíduos a experimentar sua própria espiritualidade, tem trabalhado para fazer com que as pessoas entendam o significado e as conseqüências da ação individual interligada com a ação global.
Vale lembrar também o trabalho de Oscar Motomura, um dos maiores especialistas brasileiros em treinamento de executivos, que também tem insistido que as pessoas devem procurar formas mais criativas de ser úteis. Num de seus artigos, Motomura defende a idéia de “uma educação voltada para a formação do caráter, do resgate da essência do ser humano e da formação de pessoas capazes de servir a seus semelhantes”.
Apesar de essas idéias parecerem paradoxais para os dias de hoje, algumas empresas espalhadas pelo mundo já demonstraram que é possível fazer negócios dentro de um capitalismo transformado. A Economia de Comunhão (EdC), que nasceu durante a Segunda Guerra Mundial, no Movimento dos Focolares, ligado à Igreja Católica, é um exemplo de como é possível incluir valores como felicidade, realização, participação, confiança e desenvolvimento sustentável na maneira de fazer negócios. Baseada no humanismo cristão, a EdC surge como um novo paradigma, que rejeita o individualismo e propõe novos parâmetros para as relações econômicas. Hoje, o Projeto de Economia de Comunhão na Liberdade conta com 790 empresas no mundo todo. Desse total, 125 se encontram no Brasil.
“A EdC não está baseada na cultura do ter e do acúmulo de bens, mas na cultura da partilha”, explicou o empresário Luís Colela, durante o evento Da Economia Solidária à Economia da Comunhão, realizado no final de agosto de 2007, pelo Núcleo de Estudos do Futuro (NEF) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Isso não significa que a pessoa não possa adquirir propriedades etc. O que queremos dizer é que o indivíduo deve prestar atenção em outros valores que não sejam os da cultura consumista”, diz. “Estamos falando de pequenas ações que mudam paradigmas consagrados”, continua.
A EdC surgiu no Brasil quando a italiana Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares visitou o país em 1991. Ao entrar em contato com o enorme contraste social brasileiro, Chiara propôs a criação de empresas que teriam como objetivo acabar com a miséria no mundo. Segundo Chiara, essas empresas deveriam ser dirigidas por pessoas competentes e honestas, e os lucros obtidos seriam destinados a três finalidades: o desenvolvimento da empresa, o atendimento a necessidades dos pobres e a formação de jovens. “Isso não é o mesmo que fazer filantropia, pois a intenção da EdC é envolver as pessoas. Eu diria que na EdC você pesca junto com o funcionário”, explica Colela.
Desde então, algumas empresas já existentes no Brasil passaram a atuar de acordo com os princípios da EdC. Outras foram abertas especialmente para atender a demanda feita por Chiara. É o caso do Pólo Empresarial Spartaco, complexo formado por seis empresas que foi criado em 1994, em Cotia (SP). Projetado para servir de exemplo para o mundo todo de como a EdC pode funcionar, o Pólo Spartaco foi construído numa região com baixo índice de desenvolvimento humano e econômico. Ali trabalham cerca de 130 pessoas recrutadas na região. “O pólo funciona numa área muito carente, na qual os indivíduos têm poucas chances de arrumar um bom emprego”, explica Odilon Augusto Souza Júnior, presidente da Rotogine, empresa ligada ao pólo que atua com rotomoldagem de plástico e sistemas de reúso de água.
A Rotogine começou suas atividades graças ao francês François Neveus, membro do Movimento dos Focolares, que doou à empresa uma tecnologia de tratamento de efluentes. Hoje a Rotogine fatura R$ 3 milhões por ano. Desse total, 10% são remetidos para o centro do Movimento Focolares, em Roma, na Itália, outra parcela é destinada a cursos para formação de jovens e o que resta é reinvestido na empresa.
Trabalho em Família
As histórias de ajuda mútua entre os donos de empresa e seus funcionários são comuns dentro da EdC. A Rotogine, por exemplo, já ajudou seus funcionários a comprar terrenos e a construir casas, por meio de empréstimos que são pagos sem taxas de juros, num período acordado com a empresa. “Uma vez fomos visitar um funcionário e descobrimos que ele morava num barraco. Pensamos que não seria justo uma pessoa que trabalha em nossa empresa viver em condições tão ruins quanto aquelas”, afirma Odilon. “Procuramos sempre conversar com nosso público interno para saber como anda a família, os filhos e tudo o que está ligado ao seu bem-estar”, continua.
Além disso, a empresa costuma orientar os empregados em relação a negociações comerciais e sobre os riscos que alguns tipos de empréstimo podem trazer. Quando há uma gestante no corpo de funcionários, alguém da empresa acompanha o pré-natal e oferece toda a assistência de que a mulher precisa. A empresa também tem plano de carreira para seus empregados, política de cargos e salários, e oferece cursos para desenvolvimento profissional. O resultado é um ambiente de trabalho mais harmonioso e familiar. De acordo com Odilon, “ninguém quer deixar de trabalhar aqui no pólo e a maioria dos nossos funcionários está conosco desde a abertura da empresa”.
Isso não significa que não ocorram demissões. Já houve casos de pessoas que não se adaptaram ao clima da empresa e tiveram de ser dispensadas. “As empresas da EdC funcionam como uma organização qualquer. Aqui não é cabide de empregos”, explica Odilon. “Mas geralmente a demissão só acontece quando a pessoa se comporta de forma inadequada. Em caso de mau desempenho, procuramos dar ao funcionário todo o apoio necessário para que ele desenvolva bem sua função.”
Um caso curioso de demissão é o de José Amilton, eletricista carioca de 42 anos, que trabalhou na Rotogine por quatro anos. “Um dia, o serviço no setor elétrico acabou e José Amilton ficou encostado em outra área, sem muito o que fazer e sem motivação, pois não estava mais atuando naquilo de que gostava”, conta Odilon. “Seria o caso de demitir o funcionário, mas, em vez disso, decidimos que o bacana seria ajudá-lo a abrir sua própria empresa.” Dessa forma, José Amilton se tornou fornecedor da Rotogine e também passou a realizar serviços para outras empresas.
Isso só foi possível porque, enquanto trabalhou no pólo, José Amilton fez cursos na área e se capacitou profissionalmente. “Eu sinto que aqui na Rotogine os empregados são tratados como indivíduos. O pessoal da empresa conversa com cada funcionário e procura saber se ele está feliz ou não”, afirma Amilton. “Eu, por exemplo, nunca tinha imaginado que poderia ter minha própria empresa, até que a Rotogine me fez a proposta. Trabalhando por conta própria, meu faturamento mensal dobrou.”
Odilon, que trabalhou na multinacional Rockwell do Brasil durante 17 anos, garante que é muito mais feliz atuando numa empresa da EdC. “Eu me sinto realizado em saber que a forma como trabalhamos traz benefícios para outras pessoas. Numa multinacional, seria impossível fazer o que faço na Rotogine, pois lá eu não tinha poder de decisão”, afirma.
O investimento inicial para a construção do Pólo Empresarial Spartaco veio da Espri S.A. Empreendimentos, Serviços e Projetos Industriais, cujo capital é constituído pela subscrição de acionistas do Brasil e do exterior que desejam contribuir com a EdC. Atualmente a empresa conta com cerca de 3.600 acionistas e seu capital social ultrapassa R$ 2 milhões.
Valores e Sustentabilidade
A Confeitaria Espiga Dourada é parada obrigatória para quem passa pela Estrada Bunjiro Nakao, que liga São Paulo a Ibiúna. Localizado na Mariápolis Ginetta, centro de formação de membros do Focolares em Vargem Grande Paulista (SP), o empreendimento é um dos grandes casos de sucesso da EdC e uma bela vitrine para o movimento. Tudo começou em 1991, quando duas moças do Focolares decidiram vender pães e biscoitos caseiros na beira da estrada. O sucesso foi tão grande que logo elas puderam montar uma barraca para comercializar seus produtos, a qual se transformou mais tarde numa pequena loja.
“Todo mundo que passava por aqui virava nosso freguês. As pessoas se encantavam com o tratamento que recebiam e voltavam sempre”, conta a italiana Adriana Valle, responsável por administrar a Espiga Dourada. “Sempre tivemos vontade de abrir um lugar maior, com mesinhas para as pessoas sentarem. Eu tinha um projeto pronto na cabeça, mas não havia dinheiro para isso.”
Foi quando um cliente antigo tomou conhecimento de que a Espiga Dourada fazia parte da EdC e fez uma doação para o empreendimento. “Eu me lembro que para aumentar nosso negócio pensamos em contratar um padeiro famoso. E ele nos perguntou quantos sacos de farinha a gente usava por dia. Respondi que era um só. E então ele disse que estávamos fazendo uma grande besteira em aumentar nossas instalações, pois não teríamos lucro. Hoje já usamos seis sacos de farinha por dia, e a empresa tem faturamento mensal de R$ 80 mil”, comemora Adriana.
O motivo desse sucesso, segundo a empresária, é o respeito pelas pessoas. “Aqui, cliente, fornecedor e funcionário são sempre bem tratados. Acredito que toda pessoa tem o direito natural de ser respeitada. Nosso empreendimento dá certo porque dialogamos muito com todos que estão ao nosso redor. E, quando você trata bem uma pessoa, coisas boas voltam para você.”
Apesar de não fazer parte do movimento de responsabilidade social, a Espiga Dourada tem aspectos de uma empresa sustentável. Sua arquitetura, com grandes janelas e telhado de vidro, permite uma iluminação natural. Os arredores da confeitaria são bem arborizados e a sombra oferecida pelas árvores possibilita um ambiente agradável e sem uso de ar condicionado. O lixo da empresa é reciclado e, segundo Adriana, existe uma preocupação muito grande com o consumo de energia, telefone e água. “Converso com todos os funcionários sobre a importância de economizar esses recursos. No último mês, economizamos R$ 500 na conta de luz”, afirma. “Também costumamos vender as latinhas deixadas pelos clientes. O dinheiro é doado a quem necessita.”
Economia de Comunhão e RSE
Uma pesquisa realizada pelos professores Mario Couto Soares Pinto e Sergio Proença Leitão, ambos do Departamento de Graduação em Administração de Empresas da PUC-RJ, demonstra que as empresas que fazem parte da EdC têm um forte sentido ético e são altamente competitivas e socialmente responsáveis. Esse trabalho resultou no livro “Economia de Comunhão: Empresas para um Capitalismo Transformado, publicado em 2006 pela editora FGV. Com base na teoria dos stakeholders e no movimento de RSE, o livro mostra como empresas que seguem a ideologia da EdC estão abrindo caminho para um capitalismo transformado.
Uma das conclusões de seu trabalho é a de que há uma grande compatibilidade entre EdC, teoria dos stakeholders e RSE, uma vez que todas possuem pontos em comum, como ética nos negócios e competitividade. Segundo Soares Pinto, na EdC a preocupação com os aspectos da RSE, como o respeito ao meio ambiente, por exemplo, ocorre “não por força de constrangimentos legais, mas pela inseparabilidade do resultado de suas ações”.
“As empresas que fazem parte da EdC não possuem uma preocupação teórica com a RSE. No entanto, a autenticidade da proposta é tão grande que os resultados são visíveis”, explica Soares Pinto. “As mudanças na gestão acontecem porque essas empresas realmente possuem tais valores. Por outro lado, muitas empresas do movimento de RSE costumam usar suas ações como forma de divulgar a marca”, compara.
Durante o período de estudos, Soares Pinto testemunhou diversas situações que o deixaram impressionado. Segundo ele, uma empresa chegou a indicar os serviços de um concorrente para todos os seus clientes a fim de ajudá-lo a sair da falência. Em outra ocasião, o professor viu uma empresa ser insistentemente assediada para fabricar armas, mas os donos recusaram a proposta, mesmo sabendo que a nova ocupação iria triplicar seu faturamento.
Outra forte característica da EdC observada pelo pesquisador é a espiritualidade. “Quando cheguei para fazer esse trabalho, estava muito cético em relação a tudo que me diziam. Sempre olhei com alguma desconfiança a questão da espiritualidade, pois acredito que muitas vezes a religião pode esconder outra realidade”, afirma. “No entanto, terminei meu trabalho convencido de que, nesse caso, a espiritualidade gera um comportamento positivo tanto nos funcionários quanto nos gerentes.”
Para Soares Pinto, isso não quer dizer que as partes interessadas da empresa devam seguir alguma religião. “Os gerentes das empresas de EdC costumam dizer: “Se você gosta de gente, então temos afinidade. Na minha opinião, essas empresas encontraram uma forma de contornar o capitalismo de hoje. Acredito que eles estejam procurando uma terceira via.”
Fonte: Instituto Ethos
Data: 05/09/2007 Fonte: Giselle Paulino/ Edição: Benjamin S. Gonçalves