Especialista da Charities Aid Foundation discorre sobre como a filantropia vem emergindo em países que até pouco tempo atrás eram alvos da ajuda internacional.
Nem testamentos caridosos nem grandes fundações baseadas em orçamento familiar e administração amadora. A tendência do investimento social privado, especialmente nos chamados Brics (Brasil-Rússia-Índia-China), é o filantrocapitalismo. A análise é da russa Olga Alexeeva, uma das principais especialistas mundiais em investimento social privado. Coordenadora do Programa Global Trustees da Charities Aid Foundation (CAF), organização sem fins lucrativos, com sede no Reino Unido, Olga esteve em São Paulo na segunda quinzena de abril para encontros reservados com empresários milionários – uma de suas principais atribuições -, onde concedeu entrevista exclusiva a IdéiaSocial.
Cunhado por Mathew Bishop, editor do jornal The Economist, em Nova Iorque, o termo filantrocapitalismo procura designar o que seria uma nova forma de fazer filantropia. Olga adota o conceito como uma espécie de definição guarda-chuva, que incorpora o investimento social e a responsabilidade social empresarial. “A expressão filantrocapitalismo marca muito mais uma transformação de comportamento, na medida em que trata da ação social na qual estão inseridos os princípios do negócio” – diz Olga. Segundo ela, tudo decorre da mudança de perfil das empresas e dos executivos. “Hoje, à frente das grandes corporações, principalmente nos países em desenvolvimento onde se desenvolvem as novas fortunas, não estão mais pessoas com 50 ou 60 anos. Nelas, destacam-se jovens com 30 anos, muito agressivos e líderes de processos de crescimento de empresas enormes. Antes, no modelo tradicional, a intervenção social ocorria por meio de um testamento: o empresário morria e deixava a sua fortuna para um instituto ou fundação. Hoje não. Temos um filantropo, um investidor social jovem, que quer fazer em vida, engajando-se na atividade e colocando todo o seu conhecimento de negócio nessa intervenção social” – explica.
Filantrocapitalismo em três tempos
A dirigente da CAF define três grandes blocos em processo de desenvolvimento do filantrocapitalismo. O primeiro – explica – seria formado pela Rússia, Ucrânia e países do leste europeu, que, embora não mais socialistas, ainda vêem o governo como o grande provedor das ações sociais. “Nos últimos 15 anos, quando começaram os movimentos capitalistas, esses países enfrentaram muita corrupção e os mais diferentes problemas com o próprio capitalismo. Não é uma questão ideológica, mas eles realmente desacreditam desses movimentos. Então, no leste europeu, o filantrocapitalismo está longe de ser popular, ainda não é visto com bons olhos” – analisa Olga. Mesmo assim, a especialista destaca em artigo publicado na edição de março da revista Alliance que, na Rússia, sete anos atrás, não havia nenhuma fundação privada e as doações não ultrapassavam os US$ 100 milhões. No final de 2006, mais de 20 fundações haviam sido estabelecidas por russos endinheirados. Além disso, as 30 maiores empresas daquele país têm investido cerca de US$ 2 bilhões por ano na melhoria da qualidade de vida da comunidade.
Já na China, e em toda aquela região da Ásia – pontua Olga – a situação é diametralmente oposta. “Lá, o governo não provê as ações sociais e elas se concentravam nas mãos de empresas estatais. Agora, com a espantosa ascensão do país no mercado globalizado, os empresários, além de ávidos para competir, mostram-se tão encantados com o mundo dos negócios, e com o fato de poderem transmitir sua capacidade de gestão para uma intervenção social, que eles próprios alimentam a ilusão de substituir o governo no atendimento às demandas sociais.”
A especialista cita, como exemplo, o caso do empresário Huang Rulun que, sozinho, doou US$ 350 milhões para a educação, erradicação da pobreza e cuidados com a saúde entre os anos de 2003 e 2004. No mesmo período, outros 50 filantropos chineses fizeram doações de mais de US$ 160 milhões.
O terceiro bloco, formado por países como o Brasil e a Índia, é aquele onde, apesar das desigualdades ainda serem muito grandes, o governo atende parte das demandas sociais, sem evidentemente dar conta de todas elas. “Nesses países, prevalece uma visão mista, com um pouco de encantamento e outro tanto de ceticismo em relação ao filantrocapitalismo. E isso decorre do fato de eles já terem vivido certas experiências. Já receberam, por exemplo, programas internacionais de ações como microcrédito. E também já tiveram casos de sucesso e de insucesso. Toda essa experiência reforça o seguinte quadro: as pessoas não têm a ilusão de que as empresas vão suprir o papel do Estado, mas ao mesmo tempo o Estado não atinge as expectativas da demanda social. Fica uma lacuna que nem as empresas nem o Estado conseguem suprir” – define Olga.
Investimento corporativo x investimento familiar
Há, segundo Olga, duas maneiras de se praticar o filantrocapitalismo: a corporativa e a familiar. Cada uma carrega suas peculiaridades, admite a especialista. No investimento social corporativo – diz – a característica principal é a vinculação ao negócio. “O investimento social, nesse caso, está envolvido nos objetivos do próprio negócio, e precisa, portanto, ser responsável pelo atendimento das necessidades dos diversos stakeholders, até mesmo porque a sua função é gerar lucro para o negócio. O link negocial é muito importante e influencia o tipo de investimento social que o empreendedor vai fazer.”
No caso do investimento social familiar, a vantagem em relação ao corporativo está – segundo Olga – na liberdade de escolha. “Como é dona do dinheiro, a família tem o poder de decisão e utiliza os seus recursos da forma que quiser. Nessa escolha, ela pode simplesmente atender aos seus valores e princípios ou querer assumir mais riscos sem ter que responder a outros interesses. Dessa forma, encontra-se mais livre, por exemplo, para adotar causas mais inovadoras, como a dos direitos humanos, que podem ser arriscadas para o investimento das empresas”, diz. A especialista da CAF cita os exemplos das fundações empresariais, comuns nos EUA e também no Brasil, cujos investimentos podem estar desvinculados do negócio das empresas que as mantêm. “Como empresa, a Ford talvez não pudesse ter as mesmas posições da Fundação Ford, no apoio a certos investimentos sociais, como em direitos humanos, AIDs e questões ambientais” – diz.
Apesar da liberdade de ação dos investimentos sociais familiares, Olga não acredita haver um modelo mais eficiente do que outro. “Não diria que é uma questão de eficiência. Já vi projetos corporativos extremamente eficientes. Mas acho que o poder de escolha maior das familiares constitui um trunfo porque amplia o portfólio do investimento social. Os interesses extremamente vinculados ao negócio podem restringir o menu de opções.”
Na realidade, tudo depende da legislação de cada país – defende Marcos Kisil, presidente do Instituto de Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), instituição que representa a CAF na América Latina. Para ele, no caso brasileiro não existe incentivo, por exemplo, para que o indivíduo pratique a filantropia. “No Brasil há um problema de facilidade. As empresas podem ter certos benefícios, que são poucos, é verdade. Já o indivíduo que doa recursos para a ação social não pode abatê-lo do Imposto de Renda. Desde 1996, há 11 anos portanto, não se pode mais fazer isso. Nos EUA, os recursos doados recebem desconto do Fisco”, argumenta.
Por outro lado, Kisil destaca que o governo brasileiro também enfrenta problemas para incentivar empresas a doarem para causas e organizações da sociedade civil, como forma de fortalecer as parcerias na definição de políticas públicas para a ação social. “Existem ONGs que foram cooptadas pelo governo e outras que foram criadas para poder utilizar recursos públicos. No momento, discute-se a CPI das ONGs, que é para investigar o dinheiro público posto nessas organizações. Quando o empresário vê que recursos são canalizados para duas ou três ONGs, ou vão parar no MST que invade a propriedade privada, então fica uma mensagem contraditória sobre o que as autoridades públicas querem das parcerias, seja com a sociedade civil seja com os empresários”, afirma.
O filantrocapitalismo no Brasil
De qualquer forma, os especialistas admitem haver casos brasileiros notáveis no uso da lógica do chamado filantrocapitalismo. A nova fábrica da Natura, em Benevides, no Pará, seria um bom exemplo, na medida em que a empresa, em vez de simplesmente doar recursos para a comunidade pobre do entorno, na nova planta industrial preferiu envolver as mil famílias produtoras da matéria-prima que serão utilizadas na produção de sabonetes, discutindo a organização em cooperativa, a geração de renda, a remuneração justa e o manuseio ambientalmente responsável dos recursos naturais. “Esse caso da Natura é ótimo. Mas vejo que nem todos os negócios podem usar a mesma lógica. Precisamos ser realistas. Alguns tipos de negócio, como o de produção de óleo ou de alumínio, nunca vão conseguir ‘fazer o bolo junto com a comunidade’. Mas acho que todo mundo tem espaço para exercer e praticar a responsabilidade social empresarial, alguns mais outros menos” – afirma Olga Alexeeva. Para ela, exemplos como o da Natura ainda não representam uma tendência nos países emergentes no contexto da globalização. “Não podemos ser ingênuos de achar que todas as empresas vão agir com esse tipo de visão moderna. Tudo bem: uma coisa é preparar o bolo junto com a comunidade, outro é dar um pedaço de volta. Mas qual desses é maior? O bolo que se prepara junto ou a fatia a ser distribuída na forma de doação? Ninguém ainda mediu isso com o necessário rigor”, questiona.
Para a especialista da CAF, talvez esse seja o grande desafio para o investimento social privado brasileiro. “Na maioria das vezes só enxergamos o sucesso. E é preciso também ver os insucessos. Acho que o que precisa ser feito nesse momento é uma grande análise do impacto disso tudo, de todo esse encantamento que provoca a inovação. Estamos inovando por inovar ou estamos inovando porque vai gerar mais impacto social? Estamos trocando um pedaço de bolo pelo outro ou estamos aumentando realmente a fatia que chega à comunidade? Nosso papel não é trocar um pedaço de bolo pelo outro, mas sim aumentá-lo para que realmente produza um maior impacto social”, completa. (Claudia Piche)
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