Po João Batista da Silva Oliveira*
Introdução
Organizações Não-governamentais , apesar do importante trabalho que realizam junto à sociedade, se caracterizam por um modo de financiamento, a saber, exógeno à própria organização. Estas formas de captação de recursos são constituídas por doações da sociedade, transferências do governo federal e auxílio de outras Organizações Não-governamentais nacionais e internacionais. Este modo de financiamento, por sua vez, torna os pilares vitais destas organizações muito vulneráveis, comprometendo a estabilidade, a preservação e a realização dos projetos sociais destas ao longo do tempo.
Diante deste contexto, o presente trabalho situa-se no âmbito da Teoria do Desenvolvimento Econômico e possui como tema as Organizações Não-governamentais. E responder se é possível definir um modelo de ONG que se caracterize como auto-sustentável trata-se do problema a ser resolvido. Sendo assim, tem como objetivo maior definir à partir da Teoria da Autopoiese um modelo de Organização Não-governamental que se caracterize como autônoma, auto-sustentável, portanto. Para isto faz-se necessário a) Apresentar a Teoria da Autopoiese e b) Baseado nos princípios da Teoria da Autopoiese, apresentar um novo modelo de Organização Não-governamental que se caracterize pela autonomia.
O trabalho fora elaborado mediante a hipótese de que à partir da Teoria da Autopoiese , mais precisamente dos conceitos de componentes, redes, fechamento organizacional, retroalimentação, autocriação e auto-referência possa se estabelecer um tipo de organização que se caracterize pela sua auto-sustentabilidade, preservando-se no tempo e no espaço em função de si mesma.
O trabalho se reveste de elevada relevância, pois ao tentar dar autonomia às ONGs instaladas, tende a resolver a sua elevada dependência em relação a governos, à sociedade. Não obstante, ao estabelecer um modelo auto-sustentável, as atividades de tais organizações são ampliadas, devido ao aumento do volume de recursos, contribuindo fortemente para a transformação das questões não apenas culturais e sociais, mas econômicas de uma determinada coletividade.
A metodologia consistirá em revisão bibliográfica de obras dos autores Humberto Maturana e Francisco Varela , e ainda, na análise de textos disponibilizados pela Associação Brasileira das Organizações Não-governamentais (ABONG).
O trabalho fora estruturado de maneira que, primeiramente buscaremos, com o intuito de fundamentar teoricamente um tipo de organização auto-sustentável, apresentar a Teoria da Autopoiese, enfatizando os princípios tais como componentes, fechamento organizacional, rede auto-produtora, autonomia e auto-referência. Neste sentido partimos do pressuposto de que a teoria que define a vida possa ser o suficiente para se entender os conceitos de sustentabilidade e auto-sustentabilidade.
Na segunda e última seção apresento um modelo de ONG com base na Teoria da Autopoiese, mais resumidamente um modelo de organização que se utilize de uma atividade econômica, concorrendo, mediante estratégia competitiva com o objetivo de conquistar maior poder de mercado (market share) e, mediante realização e reinversão dos lucros, financiar, sua própria manutenção, expansão e seus projetos sociais, mantendo constante, desta forma, a própria organização. Neste sentido a comercialização de produtos passa a ser vista como um mecanismo de captação de recursos financeiros pelas ONG’s. É neste sentido que, na próxima seção apresentaremos a Teoria da Autopoiese como o modelo de organização que descreve a vida, de tal forma que, quando começa a vida o que começa é este tipo de organização, comum a todos seres vivos.
1. Teoria da Autopoiese
Maturana e Garcia (1997) apresentam a dificuldade que se estabeleceu desde os primórdios da Biologia em tratar da autonomia dos seres vivos. E afirmam ainda, que este fora o principal problema posto aos homens. No entanto, observar o fenômeno biológico como um todo, de forma sistêmica, tem sido um problema rejeitado por grande parte dos cientistas. Neste contexto partem então, de um problema, a saber, descobrir o que possui comum todos os seres vivos que possa permitir qualificá-los como tais. Desta forma, seu objetivo geral consiste em indicar a natureza da organização dos sistemas vivos em relação a seu caráter de unidade.
Maturana e Garcia (1997) no âmbito metodológico alertam que apesar de usarem recursos mecanicistas seu enfoque é sistêmico. O que vale dizer, que estes não tratam das propriedades dos elementos, de sua constituição básica, mas sim de relações, de processos, de relações entre processos e de leis que regulam estes processos, realizados pelos componentes. Possuem como hipótese de estudo a existência de uma organização comum a todos os seres vivos, de tal forma que, quando começa a vida o que começa é esta organização, explicando estes, os seres vivos, em termos de uma organização, de relações entre componentes. Sendo assim, para tratarem desta organização comum a todos os sistemas vivos partem do conceito de máquinas, diferenciando estas entre alopoiéticas e autopoiéticas, onde máquinas “são consideradas comumente como sistemas materiais definidos pela natureza de seus componentes e pelo objetivo que cumprem em seu operar como artefatos de fabricação humana” (MATURANA E GARCIA, 1997, p. 69) Máquinas são unidades e “são formadas de componentes caracterizados por determinadas propriedades capazes de satisfazer determinadas relações que determinam na unidade as interações e transformações desses mesmos componentes” (MATURANA E GARCIA, 1997, p. 69). De tal forma que, a natureza concreta dos componentes não interessa, bem como as propriedades dos componentes, exceto aquelas propriedades que interferem no conjunto de interações e transformações dentro do sistema.
As máquinas que o homem fabrica possuem um objetivo prático ou não, especificado pelo próprio homem. Já a respeito das máquinas viventes Maturana e Garcia (1997) as classificam entre máquinas autopoiéticas e sistemas viventes. Neste sentido, para os autores os organismos vivos são vistos como uma máquina.
A respeito das máquinas autopoiéticas Maturana e Garcia (1997) as difere de um sistema aberto. As principais características destas máquinas se configuram por serem autopoiéticas, onde estas mantêm suas variáveis constantes dentro de um limite de valores, o processo ocorre dentro de um intervalo de limites que a própria organização do sistema especifica, quer dizer, não são especificadas pelo homem. Sendo assim, são homeostáticos, toda retro-alimentação ocorre no interior a elas, não recorrendo ao meio para manter sua organização.
Maturana e Garcia (1997, p.71) definem as máquinas autopoiéticas como: Uma máquina organizada como um sistema de processos de produção de componentes concatenados de tal maneira que produzem componentes que: I) geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas contínuas interações e transformações, e II) constituem à máquina como uma unidade no espaço físico. Por conseguinte, uma máquina autopoiética continuamente especifica e produz sua própria organização através da produção de seus componentes, sob condições de contínua perturbação e compensação dessas perturbações (produção de componentes).
Máquinas autopoiéticas se caracterizam por serem homeostáticas, especificam e produzem sua própria organização, através da produção de seus componentes. Segundo Maturana e Garcia (1997, p. 71) “uma máquina autopoiética é um sistema homeostático que tem sua própria organização como variável que mantêm constante.” E ainda, de acordo com Maturana e Garcia (1997, p.71) “para uma máquina ser definida como autopoiética, é necessário que as relações de produção que a defina sejam continuamente regeradas pelos componentes que produzem”. Sendo assim, os componentes devem estar concatenados para serem tidos como uma máquina, devendo existir uma relação de produção de componentes, senão uma concatenação de processos, onde a concatenação autopoiética de destes numa unidade física diferencia as máquinas autopoiéticas de outro tipo de máquinas (alopoiéticas). De tal modo que, as máquinas criadas pelo homem possuem processos, mas estes são de produção de componentes, sendo denominadas sistemas dinâmicos não-autopoiéticos, alopoiéticos, enfim.
As diferenças entre máquinas alopoiéticas e autopoiéticas residem no fato de, naquelas as relações ocorrem entre componentes, de ocorrerem processos; ao passo que nas máquinas autopoiéticas ocorram relações de produção de componentes e concatenação de processos que são autoprodutores. Neste sentido, Maturana e Garcia (1997, p. 72) definem autopoiese como:
Processos concatenados de uma maneira especifica tal que os processos concatenados produzem os componentes que constituem o sistema e especificam como uma unidade. É por esta razão que podemos dizer que, cada vez que tal organização se concretiza num sistema real, o domínio de deformações que este sistema pode compensar sem perder sua identidade ocorre em um domínio de trocas no qual o sistema, enquanto existe, mantém constante sua organização. (…) sistemas autopoiéticos são sistemas homeostáticos que possuem sua própria organização como a variável mantida constante.
A respeito da Autopoiese Capra vai dizer (1996, p. 99) que: Tendo esclarecido que seu interesse é com a organização, e não com a estrutura, os autores prosseguem então definindo Autopoiese, a organização comum a todos os sistemas vivos. Trata-se de uma rede de processos de produção, nos quais a função de cada componente consiste em participar da produção ou da transformação de outros componentes da rede. Desse modo, toda a rede, continuamente, “produz a si mesma”. Ela é produzida pelos seus componentes e, por sua vez, produz esses componentes.
E a partir desta definição Maturana e Garcia (1997, p. 72) conclui que: a) sistemas autopoiéticos são autônomos; b) por serem autônomos não podem ser considerados alopoiéticos. Caracterizam-se ainda, por possuírem individualidade, por não possuírem entradas e nem saídas, onde “uma organização pode permanecer constante sendo estática, ou mantendo constante seus componentes, ou também mantendo constantes as relações entre componentes que por outra parte estão em contínuo fluxo e mudança” (MATURANA E GARCIA, 1997, p.74)
Em relação aos sistemas autopoiéticos ou viventes estes, segundo Maturana e Garcia (1997, p. 75) “transformam a matéria neles mesmos de forma que seu produto é sua própria organização”. Para Maturana e Garcia (1997, p. 75) “se um sistema é autopoiético, é vivente.” E ainda, segundo Maturana e Garcia (1997, p. 75) “ a noção de Autopoiese é necessária e suficiente para caracterizar a organização dos sistemas vivos”.
Para Maturana e Garcia (1997) não é possível criar ou desenhar um sistema vivo por: serem autônomos, impredizíveis, por serem demasiado complexos, por derivar de princípios que ainda não conhecemos, ou por serem estes princípios totalmente incognoscíveis.
Concluindo, Autopoiese trata-se do padrão de organização comum a todos os sistemas vivos e se caracteriza por: a) interligação em rede de seus componentes; b) esta rede tem como objetivo criar a si mesma, onde um componente cria a si mesmo determinando toda a rede; c) os componentes estarem interligados por laços retroalimentadores; d) da mesma forma, autoreguladora, as variáveis, ou os componentes oscilam dentro de um limite, diz-se que se trata de uma rede homeostática; e) não recorrer ao meio para manter sua organização, não se caracteriza, então por ser alopoiética; f) pela rede ser cooperativa, de tal forma que, quanto maior o número de componentes maior sua flexibilidade, maior seu poder de auto-criação; h) por não ser alopoiética, por se tratar, portanto, de uma rede onde a reciclagem é sua característica principal, isto quer dizer que a rede não elimina dejetos ou capta recursos ao meio. A energia e a matéria circulam indefinidamente no interior do sistema, de tal forma que o volume de resíduos é mínimo, igual a zero. Exemplos de sistemas autopoiéticos podem ser citados, como o sistema nervoso, ao passo que um ecossistema pode oferecer uma noção intuitiva de Autopoiese, facilmente de ser apreendida. Para tratar da Autopoiese Maturana e Garcia (1997) apresentam o sistema nervoso como tal.
1.1. Os Ecossistemas
Os ecossistemas possuem características em muito similares a uma rede neuronal, onde Capra (1996) por sua vez, trata os ecossistemas como um sistema dotado de características autopoiéticas tais como, interações em rede, por estar fechado organizacionalmente, quer dizer, por especificar seus próprios limites; por reciclar seus materiais; devido a existência de parceria ou cooperação; pela existência da flexibilidade; e como sistema que tenta manter sua própria organização, que se auto-sustenta. Logo, de acordo com o exposto acima e no capítulo anterior os ecossistemas podem ser tidos como autopoiéticos. E mais, que sistema nervoso e ecossistemas são modelos perfeitos de auto-sustentabilidade.
Por exemplo, dado um ecossistema “com o objetivo” de manter sua própria organização, sua estabilidade por meio de seus componentes, as folhas das árvores que caem ao solo são processadas e decompostas em nutrientes que posteriormente são reaproveitados pelas árvores. Do mesmo modo ocorre com o oxigênio emitido pelas árvores, que é utilizado pelos animais; por sua vez, as emissões de gás carbônico emitidas pelos animais e pela decomposição de materiais orgânicos são utilizados pelas árvores em seus processos de fotossíntese, onde o carbono oriundo dos processos de fotossíntese possuem como fonte, a energia solar, que por sua vez, estas quantidades de carbono serão transformados em nutrientes com a decomposição destas árvores.
Tais processos observados na natureza são processos circulares em rede e autoprodutores. E é por meio destes que um ecossistema mantém sua estabilidade, sua autocriação sem recorrer ao meio. Ou seja, ecossistemas não demandam materiais e energia de seu meio, e, por sua vez, não eliminam dejetos ou resíduos. Um ecossistema é auto-sustentável, por meio da flexibilidade, diversidade, parceria entre seus componentes e pela constante reciclagem de materiais e energia numa intricada teia de relações não-lineares. Ademais, um ecossistema fecha sobre si mesmo.
Ao observar a natureza, observa-se que a soma de todos os resíduos produzidos é nula, não havendo desordem provocada por um ecossistema, pois os resíduos são utilizados pelos elementos que constituem a rede que o compõe.
Um ecossistema, desta forma, se estrutura no formato de rede, onde um componente determina o todo, que, por sua vez, é determinado pelo todo. Enfim, cada componente é resultado e causa ao mesmo tempo, produtor e produto. Nestes termos a configuração de um ecossistema pode ser vista como autopoiética.
Os sistemas sociais, de outro modo são vistos como alopoiéticos, pois necessitam constantemente recorrer ao meio para manter seu padrão de organização. De tal forma que, para obter a auto-sustentabilidade, ou seja, obter a capacidade de se preservar no espaço e no tempo em função de si mesmo, o desafio que se propõe é dotar os sistemas sociais, empresas, setores e famílias de uma configuração similar à dos sistemas vivos. No entanto, construir um organismo vivo é algo impossível aos homens. Mas destes organismos, do padrão de organização que a eles é comum, pode-se obter princípios importantes aplicáveis às organizações.
Na próxima seção alguns destes princípios da Teoria da Autopoiese serão aplicados com o objetivo de inferir um modelo de Organização Não-governamental que se caracterize pela auto-sustentabilidade.
2. Um Modelo de Organização Não-governamental Auto-sustentável
Recapitulando. A Teoria da Autopoiese trata de um tipo especial de organização que define os seres vivos, de tal forma que, quando começa a vida o que começa é este tipo especial de organização. Ao analisar este tipo de organização nota-se que este se qualifica pela ligação em rede entre seus componentes, por ser caracterizar como uma rede fechada, e ademais por esta ter como função criar a si mesma.
Com base nos princípios e características descritas acima pode se inferir um tipo de organização não-governamental, que do ponto de vista de seu modo de financiamento se caracterize como auto-sustentável, ao internalizar um modo de financiamento, explorando uma atividade definida com objetivo de gerar lucros, e por sua vez, reinvesti-los em políticas públicas. A seguir passaremos a descrever este novo tipo de organização não-governamental.
A organização descrita aqui trata-se a) de uma associação entre indivíduos; b) Tal associação tem como objetivo a realização de políticas públicas para uma determinada coletividade, portanto, trata-se de uma associação sem fins lucrativos; c) Num primeiro momento tal associação sobrevive de doações da própria coletividade, ou seja, o mecanismo de financiamento é exógeno à própria organização; d) num segundo momento ela instala uma atividade econômica e com uma estratégia concorrencial tem como objetivo conquistar maior poder de mercado, eliminando rivais; e) Tal organização, por meio da realização de lucros, passa a ter como objetivo o financiamento da expansão de sua atividade econômica e o financiamento das políticas públicas, deste modo, tal organização se faz auto-sustentável. O mecanismo de financiamento de políticas públicas se faz endógeno à própria organização.
A organização descrita aqui, deixa, portanto, de ser alopoiética, para adquirir uma configuração similar à dos organismos vivos, autopoiética, portanto. Do ponto de vista de seu financiamento a organização se torna auto-sustentável e difere de um sistema aberto, podendo ser vista como um sistema fechado. Torna-se autocriadora, e toda retroalimentação ocorre no interior a ela e não recorre deste modo ao meio para manter sua organização, sua própria estabilidade.
A ONG Auto-sustentável, baseada na Teoria da Autopoiese se constitui num tipo de organização que possui dois componentes, a saber. A atividade econômica da organização de um lado e a atividade social de outro, que tenta transformar a realidade social de seu público alvo. Esta relação pode melhor visualizada por meio da figura 01.
Figura 01
Modelo de Organização não-governamental Auto-sustentável