Empreendedor competente é aquele que sabe não ser personalista e faz o nome da entidade maior que o seu próprio.
Há 60 anos, um grupo de pais de jovens com deficiência mental leve a moderada se reuniu e criou uma ONG que deveria abrigá-los durante o dia. Iniciados os trabalhos terapêuticos, descobriram que a sociedade não iria bancar a instituição e começaram a pensar em produtos que poderiam ser vendidos, para que o resultado entre receita e despesa fosse revertido para a organização se manter e prestar o melhor serviço possível a estes jovens.
Hoje, esta entidade se desenvolveu. Possui loja em shopping center e vende seus produtos como brindes para várias grandes empresas; supermercados revendem seus produtos. Consegue atender cem jovens diariamente em seu galpão, com refeições e atendimento psicológico para toda a família, suprindo uma necessidade da sociedade.
Uma pessoa que se autodenomina empreendedor social compra remédios no atacado e vende, sem lucro, para a população de uma cidade do Brasil Central. Tem suporte dos laboratórios, que lhe vendem com tabela de atacado, e consegue apoio dos governos municipais para o “seu negócio”. Esquece de alguns stakeholders (público de interesse) importantes como as farmácias locais e do fisco federal – isenção da Cofins. Faz isto com o intuito de atender a missão de sua entidade que não visa lucros, mas, para tanto, remunera familiares.
Outro artesão do litoral paulista reúne jovens para ensinar a sua arte e não cobra nada por isso. Porém, depois, revende os produtos em beneficio próprio como justificativa para continuar ensinando. Também vende a arte produzida por ele sob o guarda-chuva da ONG que fundou, dando recibo de donativo para a venda dos produtos – que não é o documento hábil.
Estes são alguns dos casos que já analisamos em nosso escritório, e sempre permanece uma questão: qual a relação do empreendedorismo com este setor que abriga ONGs, associações sem fins lucrativos e fundações, com ou sem qualificação de Oscip ou título de Utilidade Pública? Temos de buscar a sustentação financeira da organização, mas a que preço? Qual a diferença entre os três casos relatados? Quem é o empreendedor social?
Segundo a organização mundial Ashoka Empreendedores Sociais, este personagem é uma pessoa visionária, criativa, prática e pragmática que sabe como ultrapassar obstáculos para criar mudanças sociais significativas e sistêmicas. Possui uma proposta verdadeiramente inovadora, já com resultados de impacto social positivo na região onde atua, e demonstra estratégias concretas para disseminar essa idéia nacional e/ou internacionalmente.
A Ashoka identificou algumas características comuns e aspectos diferenciados do trabalho de líderes sociais com perfil empreendedor, tais como;
• criação de campos de trabalho inteiramente novos na área social;
• criação de novas instituições, mais arejadas e dinâmicas;
• foco em um público-alvo específico, que na maioria das vezes sofre discriminação ao longo dos anos. Com muita persistência, os empreendedores sociais superam as dificuldades e conseguem tornar acessível a esse grupo social noções de organização comunitária e de exercício de cidadania, nunca antes experimentadas.
Como começar?
A questão que se coloca é: qual a diferença de um empreendedor qualquer que começa um negócio e o empreendedor social? Muitas vezes, a entidade que o empreendedor social constrói fica totalmente atrelada a ele, ou seja, ele é seu presidente ou coordenador com salário garantido.
O proprietário de um novo negócio, o microempresário, também contribui para o desenvolvimento da sociedade, para um mundo melhor. Contrata funcionários, paga impostos sobre a venda de seus serviços e produtos. Na verdade, muitos dos projetos de empreendedorismo social são empresas travestidas em negócios sociais. Sem aprofundar mais nesta polêmica, prefiro mostrar as vantagens de um empreendedorismo social de grupo e menos personalista.
Quando um grupo de amigos ou conhecidos resolve se organizar em uma associação sem fins lucrativos, o empreendedor tem visão do que quer atingir e sabe que sozinho não conseguirá. Esta é a essência de uma associação. Ela não começa com um patrimônio, como uma fundação, mas, sim, como uma reunião de pessoas com o mesmo interesse e visão.
É lógico que haverá uma ou duas pessoas que assumirão a liderança da iniciativa e conduzirão o grupo todo, agregando mais homens e mulheres com os mesmos ideais. E, se forem verdadeiros empreendedores sociais, agregarão pessoas que, no futuro, poderão ser os novos diretores, para que o grupo inicial não se perpetue na direção da associação.
Observamos este tipo de empreendedorismo social coletivo no primeiro caso relatado: uma organização que supera no tempo a maioria das organizações, pois os primeiros empreendedores souberam não ser personalistas e fizeram o nome da entidade maior que o seu próprio. Pensaram em produtos que não tivessem concorrentes e pagaram todos os impostos devidos, emitindo nota fiscal de venda dos produtos – com as isenções possíveis para as ONGs.
As organizações do Terceiro Setor deveriam sempre pensar em meios de diversificar suas fontes de receitas, e uma delas – que sempre recomendamos – é a geração de renda própria. Em algumas ONGs, servirá apenas como mais uma fonte. Em outras, será a estratégia principal, visto que a sua causa não consegue um apoio maior da sociedade, quer de indivíduos ou de empresas.
Sem dúvida, é mais fácil buscar recursos para crianças, educação, meio ambiente, saúde, cultura etc. Porém, quando criamos organizações para cuidar da ressociabilização de população carcerária, idosos, deficientes mentais, dependentes de álcool e droga, doentes terminais, a busca de recursos por meio da venda de produtos e serviços torna-se condição indispensável.
Planejamento
Dividimos as organizações em três tipos, de acordo com suas prioridades em relação a quem recebe a receita da venda de produto e serviços:
1. só os beneficiários participam financeiramente. Exemplos: artesão, comunidade carente, empreendedor social personalista;
2. a instituição e os beneficiários dividem as receitas – não necessariamente 50% para cada: beneficiário produz e pode também beneficiar-se financeiramente;
3. receita compõe a renda da instituição e faz parte da estratégia de diversificação de fontes de recursos: produtos podem ser fabricados por terceiros e/ou por beneficiários, serviços também podem ser vendidos.
No Plano de Captação de Recursos e Sustentabilidade (PCRS) que elaboramos normalmente, recomendamos os projetos de geração de renda do tipo 3, sempre levando em conta a necessidade da sociedade e todos os stakeholders envolvidos.
Os tipos de receitas por meio de geração de renda própria mais comumente encontrados são:
• Caxas de associados: poderão ser associados votantes ou mantenedores – conceito mais moderno;
• Venda de serviços: consultorias e assessorias, cursos, web design, guias de ecoturismo, educação e saúde, palestras motivadoras e/ou esclarecedoras para funcionários de uma empresa;
• Venda de produtos: bazar com produtos usados ou novos, doces e salgados, artigos institucionais (canetas, chaveiros etc), artesanato, leilões de arte, royalties;
• Marketing Relacionado à Causa (MRC), como o McDia Feliz, Colgate Herbal / SOS Mata Atlântica;
• Aluguel de imóveis – recebidos por doação ou comprados –, aluguel de salas ou salão ociosos;
• Rendimento de patrimônio (endowment fund): receita de juros sobre recursos aplicados no mercado financeiro.
Valem algumas dicas sobre o que é necessário para empreender um projeto social que tenha a geração de renda própria como uma parte importante da receita: conhecimento profundo do que se está fazendo ou executando; noções da lógica de mercado; formação de preços; logística e distribuição; marketing; produção própria ou terceirizada; planejamento estratégico para os próximos cinco anos; capacidade financeira para o investimento inicial; plano de negócio; planejamento e gestão; profissionais capacitados; adequação legal; e escala.
Todos estes itens são muito importantes, e sua ordem descrita não é uma lista de prioridades. Sem dúvida, a criatividade, o planejamento e o desenho de produtos inovadores são a chave do sucesso.
Por: Michel Freller
Fonte: Revista Filantropia – 1/9/2008