*Marcos Biasioli
Em face da determinação da primeira Carta Cidadã de 1988, na época a pioneira na regulação das políticas de Estado, foi promulgada a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas). Dela, consta a instituição do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) ao qual, entre outras atribuições, coube atestar e certificar as instituições sociais criadas pela sociedade civilmente organizada, como beneficentes de assistência social, cujo reconhecimento traduz o acesso à imunidade tributária.
Por se tratar de recurso público, o legislador impôs às entidades beneficentes a obrigação de contrapartidas, em especial, a comprovação do emprego de seus ativos em prol de pessoas que estão abaixo da linha pobreza. Assim, permitiu que qualquer cidadão, especialmente o agente público, pudesse delatar o descumprimento por parte das entidades de qualquer requisito da lei.
Porém, em um passado recente, o Poder Executivo estava acuado com o volume emblemático de tais processos administrativos pendentes de julgamento junto aos Ministérios da Previdência e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, além dos efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal, que se consolidou por meio da Súmula nº 8, sobre a decadência tributária de cinco anos para lançamento fiscal decorrente de contribuições previdenciárias. Por isso editou, em 10 de novembro de 2008, a medida provisória nº 446/08, alforriando todas as entidades sociais, ou seja, as beneficentes e as “ineficientes” de assistência social.
Para se ter uma ideia do quanto as entidades tidas como be(i)neficentes, deixam de arrecadar aos cofres públicos, basta se fazer a seguinte aritmética:
Tal cálculo indica que a alforria que o Poder Executivo concedeu às beneficentes e “ineficientes” representa aos cofres públicos e aos contribuintes R$ 18 bilhões, valor suficiente para construir 375 mil casas populares, erradicando inteiramente as favelas da Rocinha (Rio de Janeiro) e Paraisópolis (São Paulo).
Contudo, há de se subtrair dessa cifra o valor empregado pelas verdadeiras beneficentes em programas sociais que visam a diminuir a pobreza e as desigualdades sociais.
Dado o grito da sociedade e a hipocrisia de alguns parlamentares, o Congresso Nacional, no dia 12 de fevereiro de 2009, fez publicar no Diário Oficial da União o Ato do presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, rejeitando a malsinada medida provisória 446.
Diante de tal fato legislativo, a partir desta data não faz mais parte do sistema jurídico pátrio vigente tal medida provisória, a qual regulava a certificação das entidades beneficentes e a questão da isenção das contribuições sociais. Ela pertencia ao grupo das normas legislativas precárias e instáveis, capazes de ter sua vigência soterrada repentinamente, como de fato ocorreu.
Assim, consumada a rejeição da medida provisória, cabe agora esclarecer o desenrolar do cenário legislativo que regula a certificação das entidades filantrópicas e a isenção das contribuições sociais:
· Narra a resolução nº 1/2002 do Congresso Nacional, em seu artigo 14, que “rejeitada a medida provisória por qualquer das Casas, o presidente da Casa que assim se pronunciar comunicará o fato imediatamente ao Presidente da República, fazendo publicar no Diário Oficial da União (DOU) ato declaratório de rejeição da medida provisória”;
· Com a publicação do ato declaratório de rejeição da medida provisória em DOU, dispõe o artigo 11 da resolução nº 1/2002 que a comissão mista formada por membros do Senado Federal e da Câmara dos Deputados deve elaborar em 15 dias projeto de decreto legislativo que discipline as relações jurídicas decorrentes da vigência da medida provisória;
· O mesmo artigo prevê que, caso a comissão ou relator designado não apresente o referido projeto de decreto legislativo, pode outro deputado oferecê-lo para apreciação da comissão mista, para que esta apresente seu parecer. Todo esse trâmite, até a efetiva publicação do decreto legislativo, não pode exceder 60 dias da data da rejeição da medida provisória;
· Por fim, caso o Congresso não apresente o projeto de decreto legislativo, expirando-se o prazo mencionado de 60 dias da data da rejeição da medida provisória, serão considerados perfeitos os atos jurídicos observados à época de vigência da medida provisória.
Para facilitar a interpretação prática da regulação, é salutar fazer uma reflexão das seguintes hipóteses legais:
1) A ausência da publicação de decreto legislativo pelo Congresso Nacional valida a anistia social concedida pela MP a todas as entidades que mantinham processos administrativos em curso no CNAS ou no MPS, pois a medida provisória, enquanto vigente, produziu efeitos;
2) A edição de decreto legislativo pode contemplar duas hipóteses:
· Manter os efeitos da medida provisória, a exemplo da primeira hipótese acima;
· Rechaçar os efeitos da referida medida, ou seja, tirar toda a sua eficácia;
· Rechaçar parcialmente os seus efeitos. Isso significa que ela poderá exercer a cidadania alforriando as beneficentes e mantendo as ineficientes na mira do julgo administrativo e judicial.
Por fim, na pendência de outra norma cabe salientar que, em face da queda da medida provisória 446/08, volta com força plena a norma que antecedia, ou seja, está vigente no ordenamento, atualmente, o artigo 55 da lei nº 8.212/91 a exemplo de todas as nuanças do decreto nº 2.536/98.
Diante dessas alianças legais, cabe concluir que a sociedade pode cobrar o Congresso Nacional para que o mesmo demonstre cidadania, respeito ao direito das beneficentes e, por consequência, punição às “ineficientes”. Tudo isso sob pena de ser responsabilizado de se aliciar com a hipocrisia da moralidade pública, o que frustra a luta pelo direito das transformações sociais lembrada pelo jurista italiano Norberto Bobbio: “luta-se ainda por esses direitos porque após as grandes transformações sociais não se chegou a uma situação garantida definitivamente, como sonhou o otimismo iluminista”.