A matéria, publicada no prestigioso Financial Times, em 25 de maio de 2006, afirma que as empresas “devem ser administradas indiscutivelmente só no interesse de seus acionistas” e que “a administração no interesse dos demais stakeholders poderia, de fato, ser nociva” para a organização, identificando cinco argumentos fundamentais, logo em seguida, para justificar a tese de que “a maximização dos lucros para os acionistas deveria ser o único guia para os administradores”.
A corajosa tomada de posição, que parece anacrônica em um mundo
corporativo cada vez mais atento às instâncias de todos seus stakeholders, na verdade traduz o hábito mental do mainstream empresarial, ainda em plena crise de identidade e relutante a abandonar as convicções do velho paradigma.
Com efeito, a vertiginosa multiplicação das iniciativas empresariais, que confundem o articulado leque que abrange marketing social, filantropia, investimento social privado, responsabilidade social empresarial e sustentabilidade corporativa, sugere o caráter incipiente de um processo, que, na pior das hipóteses, se manifestará como mero “greenwash” (“vamos dar uma pintadinha de verde na organização”), tendo, no outro extremo, uma transição dolorosa e inevitável para um novo paradigma de fazer negócios, que traduz um caminho profundo de expansão da consciência individual e coletiva, que quase beira a experiência espiritual.
O que é colocado, de fato, em discussão, não é a função empresarial de gerar lucros econômico-financeiros. É evidente que isto não é, em algum momento, questionado pela construção do “triple bottom line”, que postula, desde os anos oitenta, a necessidade de integrar um tripé gerencial e estratégico, fundamentado na tríade do econômico-ambiental-social. Se o fator econômico perdesse relevância, por sinal, teríamos um “bipé” de referência, não uma construção triangular. O que é verdadeiramente colocado em discussão é o “como” gerar lucros e “para quem”: isto é, como compartilhar os benefícios da atividade empresarial, em um mundo tragicamente desigual, e qual nova ética empresarial deveria guiar o processo de geração dos lucros.
A sociedade, deste ponto de vista, parece estar cada vez menos disposta a aceitar a passiva imposição das externalidades sociais e ambientais, que o atual modelo econômico tem tradicionalmente implicado. A transição para um novo conceito de “sucesso empresarial” sugere a necessidade de novos indicadores, que, no âmbito micro e macro-econômico, capturem a complexidade da realidade empírica, extrapolando diretrizes estratégicas verdadeiramente (e não hipocritamente) inspiradas por uma visão de sistema. Desta forma, os indicadores econômicos e financeiros serão integrados por indicadores sociais e ambientais; a métrica do PIB, já melhorada pela criação de indicadores de desenvolvimento humano, encontrará na noção de “qualidade de vida” seu novo horizonte de evolução.
Como lembra o Prof. Ladislau Dowbor, é inconcebível, em uma sociedade que migre do “conhecimento” para a “sabedoria”, que seja considerado um sucesso, numericamente, o aumento do PIB que decorre de um maior consumo de gasolina, nas nossas cidades paralisadas pelo trânsito veicular, enquanto o custo social (estresse humano) e os danos ambientais (emissão de gases de feito estufa), decorrentes de um engarrafa mento na hora de pico, simplesmente não aparecem nas estatísticas oficiais. O curioso é que o raciocínio ecoa um famoso discurso de Robert F. Kennedy, há mais de quarenta anos atrás. O que evoluiu, desde então, é a consciência do papel que as empresas possuem, indiscutivelmente, para a construção de uma sociedade mais eqüitativa e sustentável.
O equívoco da suposta impotência e inaptidão das empresas, a desempenharem tal papel, pode ser facilmente dirimido, quando refletirmos sobre o impacto espetacular do desempenho empresarial, capaz de gerar receitas até superiores aos PIB´s nacionais, com uma atuação transversal, no caso das multinacionais, em dezenas de países, simultaneamente. Isto dá poder as empresas e atribui a elas uma extraordinária responsabilidade (no sentido etimológico de “responder” aos atuais dilemas do desenvolvimento), posto que as políticas corporativas para a sustentabilidade (ou a sua eventual ausência) têm uma aptidão para atingir povos e territórios, que nenhum governo nacional, teoricamente limitado pela tríade constitutiva clássica do direito internacional (um território, uma população e um poder de governo), possui. Por outro lado, alguns setores parecem estar posicionados de forma ainda mais peculiar, logrando fenomenais potencialidades de impacto, na edificação de um modelo mais sustentável de desenvolvimento. O setor de comunicação, por exemplo, amplamente responsável pela formatação de uma sociedade de consumo inconsciente, em que desejos e necessidades são confundidos, enquanto um exército de deprimidos sofre a comparação com modelos inalcançáveis de beleza e sucesso, tem uma enorme oportunidade de resgate, que permita recuperar o sentido autêntico da definição de “desenvolvimento sustentável”, cunhada pela Comissão Bruntland em 1987. Se desenvolvimento sustentável significa “satisfazer as necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”, é preciso entender o porquê do aparente fracasso das organizações, em traduzir na prática a definição agora lembrada.
Talvez, em primeiro lugar, pelo seu cunho pateticamente antropocêntrico, que coloca o homem ao centro de tudo, como se ele não fosse um simples elo de uma grande rede da vida, em que a satisfação de outras necessidades (por exemplo, do meio ambiente) é condição pela própria subsistência do gênero humano. Por outro lado, como lembra o Prof. J. Imberger, a verdadeira questão é identificar quais são as nossas reais “necessidades” e não confundir o conceito com a noção de “desejos”, tipicamente alimentada em uma sociedade do consumo inconsciente. Como afirmou Gandhi, certa vez, com expressão não traduzível para o Português (devido ao trocadilho fonético), “we have enough resources for our need, but not our greed”.
A opção empresarial por formas de produção mais limpa, pelo uso de materiais recicláveis, pela eco-eficiência, pelo estímulo a um consumo mais responsável, identifica o novo papel corporativo e convida as empresas a assumirem sua parcela de contribuição, no solucionamento das problemáticas coletivas. Ao lado do setor de comunicação, o setor financeiro possui, também, uma fantástica oportunidade, para redirecionar seus negócios de forma mais compatível com as demandas da sociedade, agindo como poderoso veículo de desenvolvimento sustentável. Um exemplo bastante atual pode ser fornecido, entre outros, pela mobilização global de agentes financeiros em torno das mudanças climáticas, que representam o maior desafio atualmente enfrentado pela nossa espécie humana, com conseqüências perniciosas em todas as dimensões: econômica, ambiental e social.
Mais de duzentos e vinte investidores institucionais, representando cerca de 60% do total de ativos circulantes no globo (trinta e um trilhões de dólares, sobre um total estimado de cinqüenta), estão solicitando disclosure de informações sobre as políticas de mudanças climáticas, para cerca de duas mil empresas no mundo (Carbon Disclosure Project – CDP). Interessados a receber estas informações, na ótica de uma futura adequação de suas decisões de investimento, são também entidades brasileiras, como ABRAPP, ANBID, Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, Unibanco e inúmeros fundos brasileiros de pensão. Patronos do projeto, no Brasil, são a própria ABRAPP e o Banco ABN Amro Real, enquanto patrocínio financeiro foi fornecido por um leque considerável de entidades, tais como BM&F, PREVI, PETROS, FUNCEF e Banco ABN Amro Real, entre outras (a lista completa está em: www.fabricaethica.com.br).
Das cinqüenta corporações brasileiras, que receberam o pedido de disclosure, na sua primeira edição brasileira, bem vinte e nove comunicaram a intenção de responder, manifestando um tácito entendimento de como a responsabilidade empresarial venha a ganhar renovados conteúdos, colocando, no horizonte de atuação das empresas, objetivos, processos e instâncias outrora desconhecidos. Interessante verificar que as empresas de telecomunicações brasileiras (com uma única exceção) têm desconsiderado o pedido do CDP, parecendo ignorar as enormes oportunidades de negócios, que um mundo aflito pelas mudanças climáticas gera, um pouco paradoxalmente, para a economia das comunicações virtuais.
No que pesem, de toda forma, as críticas sobre o caráter meramente incipiente das iniciativas do setor financeiro, questionando-se o uso efetivo das informações socioambientais, por parte dos fundos de pensão e demais investidores institucionais, assim como a verdadeira aderência de certas iniciativas do setor bancário (adesão aos Princípios do Equador; criação e implementação de políticas socioambientais) à realidade de suas organizações, é inquestionável a mensagem transmitida, sobre a iminente incorporação destas variáveis na prática dos negócios, dentro de uma visão de futuro, que atrela, cada vez mais, a administração do risco empresarial, bem como desempenho financeiro e sucesso econômico de longo prazo das empresas, à sua capacidade de trilhar um caminho rumo à sustentabilidade compartilhada. Inclusive, apaziguando as ansiedades, também, do excelente Anant K. Sundaram, citado no início deste artigo, quanto à compatibilidade dos interesses aparentemente conflitantes de “shareholders” e “stakeholders”.
O sacrifício, talvez (vide abaixo), será inevitável para o capital especulativo de curto e curtíssimo prazo, pouco interessado a participar da construção de retornos financeiros de longo prazo. Mas, se o movimento da responsabilidade social empresarial, como um todo orgânico, terá servido para fortalecer uma visão mais matura do mercado e estimular a mobilização coletiva das empresas e do setor financeiro, como atores centrais do cenário social, os aparentes sacrifícios de uma minoria de investidores (aqui está outro equívoco, pois o novo modelo não tem vítimas, mas só co-autores de um futuro mais digno para todos) deverá reverter em ganhos difusos, capazes de beneficiar a inteira família humana.
Trata-se, em última análise, em acordo com uma visão integral do mundo e do ser humano (vide a incomparável lição do Ken Wilber), de operar uma reapropriação do significado etimológico das palavras, “redescobrindo” as maravilhas de um caminho coletivo, em que o termo “competir” (do latim: cum + petor = “ir juntos para algum lugar”) possa ser desconstruído de suas implicações predatórias e eternamente conflitantes, para aludir a um novo paradigma de “concorrência” empresarial, em que o “correr contra” (contra a sociedade, contra o meio ambiente, contra os outros e, em definitiva, contra nós mesmos), seja substituído por um “correr com”.
Fonte: Texto publicado pela revista RI – Relações com Investidores – junho/2006.
GIOVANNI BARONTINI – sócio de FÁBRICA ÉTHICA BRASIL – Consultoria em Sustentabilidade e Superintendente da Divisão de Desenvolvimento Sustentável do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC/SP. www.nef.org.br
E-mail: giovanni.barontini@fabricaethica.com.br