O chileno Humberto Maturana é médico e biólogo de formação. Sua compreensão da biologia humana levou a teorias que originaram o pensamento sistêmico, um dos fundamentos da moderna gestão empresarial. Junto com Ximena Dávila, fundou e dirige no Chile o Instituto Matriztico, no qual trabalham com organizações humanas – sejam famílias ou empresas – a partir do que chamam de Matriz Biológica da Existência Humana. Nessa matriz, entrelaçam-se a Biologia do Conhecer e a Biologia do Amar. Humberto Maturana e Ximena Dávila estiveram recentemente no Brasil participando de um seminário promovido pela Fundação Nacional de Qualidade. Nesta entrevista, em que fizeram questão de falar juntos por não admitir hierarquia entre a dupla, explicam suas propostas de resgate do ser humano, da sua capacidade de amar e de se relacionar, e de como isso refletiria de maneira positiva nas empresas. Além disso, vêem o nascimento de uma nova era em que os líderes serão dispensáveis.
Instituto Ethos: O que é o pensamento sistêmico e como ele se aplica na gestão das empresas?
Ximena: Primeiro, faço uma pergunta a você: o que você entende por responsabilidade social empresarial?
IE: O Instituto Ethos é um pólo de organização de conhecimento, troca de experiências e desenvolvimento de ferramentas que auxiliam as empresas a analisar suas práticas de gestão e aprofundar seus compromissos com a responsabilidade social empresarial. Para o Instituto Ethos, a RSE é a forma de gestão que se define pela relação ética e transparente da empresa com todos os públicos com os quais ela se relaciona e pelo estabelecimento de metas empresariais compatíveis com o desenvolvimento sustentável da sociedade, preservando recursos ambientais e culturais para as gerações futuras, respeitando a diversidade e promovendo a redução das desigualdades sociais.
Ximena: No que você me disse, há o pensamento sistêmico-sistêmico. Não é uma empresa flutuando no ar, é uma empresa em um espaço que a faz possível, que a faz sustentável, que lhe dá energia – o que tem a ver com produtividade -, que faça sentido às pessoas. Isso vai fazer com que a empresa se mantenha assim. Porque se eu for vender trajes de banho na Antártida, vou me dar mal. Se tenho uma empresa produtiva, se vendo algo, esse algo é um serviço à comunidade. Mas nós não falamos em “empresas privadas”. Dizemos que todas as empresas são “públicas”, porque têm de fazer sentido ao espaço social à que pertencem. Então, quando falamos de “empresas privadas”, falamos de algo que está fora do contexto da comunidade à qual pertence. E toda empresa pertence a uma comunidade, a comunidade é o que a faz possível. Você pergunta sobre o sistêmico. É o mesmo fundamento do que você nos disse, o olhar que você colocou foi o olhar sistêmico: são as empresas, as pessoas, o entorno, e a ecologia, ou seja, a biosfera. Isso implica ter consciência de um fluir sistêmico-sistêmico, que tem a ver com a dinâmica, com o acoplamento entre pessoas-empresa, empresa-comunidade, comunidade-biosfera.
IE: Vocês dizem que o pensamento sistêmico não é uma teoria. Por quê?
Ximena: O sistêmico não é um pensamento, uma teoria, é um modo de vida. Porque somos constitutivamente sistêmicos-sistêmicos. O que acontece é que nascemos como seres amorosos. Quando nascemos, como bebês, vimos com todas as anteninhas para viver acoplados em coerência com o mundo natural. Mas vivemos em uma cultura que nos encaixota, que nos coloca na “adolescência”, na “hiperatividade”, na “ambição”, no “sucesso”, que nos categoriza. Tudo o que significa modo de vida começa então a desvanecer, a desaparecer. O que estamos dizendo não é convidar a um “pensamento sistêmico-sistêmico” como uma novidade, mas talvez recuperar em nós o que é constitutivo do ser humano. É que somos seres sistêmicos. Por exemplo, você fala da sustentabilidade, e a sustentabilidade, para que permaneça no tempo, implica que haja esta colaboração, o estar bem, o estar conversando.
Maturana: Queria propor um exemplo absolutamente cotidiano sobre a dinâmica sistêmica humana. Imagine que estamos na sala de uma casa com a mãe, o pai, os filhos, uma empregada, um conjunto de pessoas. E há um aquário. Um belo dia, o peixe desaparece. O que se transforma? Se transforma tudo. As crianças começam a perguntar onde está o peixe, e se antes tinham de buscar comida para ele, agora já não precisam mais, já não têm peixe. E a casa está diferente, porque o aquário não está mais lá. Tiramos uma coisa que parece tão simples, o peixe do aquário, e se transforma toda a casa. Até onde isso chega? Até onde estão interconectadas essas pessoas no viver social. Essa é uma situação sistêmica. É isso que queremos dizer quando falamos que não é um pensamento, não é uma teoria, é um modo de vida, uma dinâmica relacional.
IE: E como isso se reflete nas empresas?
Ximena: Esse modo de nos relacionarmos faz com que uma organização crie bons produtos, faz com que as pessoas se mantenham mais tempo lá. Portanto, a empresa se sustenta mais no tempo. O que acontece com muitas empresas? Elas se transformam em universidade para as novas pessoas que chegam, que ficam um tempo ali e logo buscam outro lugar, porque esse lugar já não lhes proporciona o que elas desejam em crescimento, em motivação, em capacitação, o que for. E por que não ficam? Muitas vezes não ficam porque não têm o sentido de pertencer.
IE: Maturana, você diz que as empresas são comunidades humanas, espaço de colaboração e co-inspiração. O que significa isso? O que significam esses conceitos?
Maturana: Há várias maneiras de relacionar-se entre as pessoas. Algumas são de autoridade. Sou o chefe, os que me são subordinados me obedecem. Os subordinados estão subordinados aos desejos, às ordens, às aspirações dos chefes. O chefe diz “eu quero tal coisa”, e isso é uma ordem. E o subordinado, sem questionar, faz. Essa é uma forma. A outra forma é que várias pessoas se encontram em um lugar e se movem com independência umas das outras, o que um faz não afeta os outros. E outras formas são aquelas nas quais diferentes pessoas interagem entre si, não em uma relação de autoridade e subordinação, não em uma relação de completa separação, mas fazendo coisas juntos. Este fazer coisas juntos pode conservar-se no prazer de fazê-las juntos ou derivar à subordinação ou à dispersão. Quando se conserva o prazer de fazer as coisas junto, se conversa. O que um diz não é uma exigência para os outros. É um convite, uma reflexão para gerar um fazer conjunto. Não se vive como isso uma ordem nem como indiferença, se vive como participação, um fazer de todos eles, no qual o que cada um faz é coerente com o que fazem os outros desde a autonomia, por meio da compreensão do que se está fazendo junto. Isso é o que queremos dizer quando falamos de colaboração. Esse espaço acontece em uma conversação, em uma co-inspiração. Por exemplo, aqui estamos juntos conversando, como resultado de uma co-inspiração. Em algum momento se sugere a necessidade de uma reunião, e isso se converge no fato de que estamos juntos e nos escutamos. Não há uma relação de autoridade, não estamos dispersos, mas estamos fazendo algo juntos que é uma entrevista, uma conversação, e tem um caráter que vai depender da natureza do que se faz. Mas, que está associado com o momento de estar aqui, de querer estar aqui, de fazer coisas que vão surgindo desta interação que não é de autoridade, e que não é de dispersão.
IE: Vocês fazem uma certa crítica à idéia da liderança, em oposição à idéia da gerência co-inspirativa, pois a liderança seria baseada em obediência a uma autoridade. Mas, tanto nas empresas como nas escolas de gestão, fala-se muito sobre a necessidade da formação de líderes. Como vocês vêem essa necessidade da formação de líderes? E como essa idéia da gerência co-inspirativa é recebida pelas empresas quando vocês a apresentam?
Ximena: As empresas que nos escutam são as empresas responsáveis, sérias e audazes. E a palavra é audaz, pois estamos convidando-as a uma mudança de era, passar da era da pós-modernidade à era da pós-pós-modernidade. A era da pós-modernidade é a era da denúncia, de dizer estamos mal, algo tem de mudar, temos as mudanças climáticas, estão morrendo espécies. Estamos como o discurso, mas estamos parados no mesmo lugar. Passar à era da pós-pós-modernidade é passar à era da ação, à possibilidade de que surja o Homo Sapiens-Amans eticus, cuja ética central é seu viver e conviver. Para esta mudança de era, estamos propondo o fim da era da liderança para entrar na era da colaboração e da co-inspiração. Quando falamos de liderança, estamos dizendo que há pessoas que vão guiar outros de alguma maneira. Acontece que no momento em que alguém guia, tudo nasce em sua mente. Mas, a palavra líder perdeu o sentido no mundo. Não é o líder, é o gerente a pessoa que tem mais responsabilidade, que co-inspira, que colabora. Você é gerente em uma empresa, e por ser gerente não é líder. Mas o que você faz na gerência co-inspirativa é convidar a inspirar-nos juntos, a colaborar em um projeto conjunto. Se eu sou o gerente co-inspirativo, para mim as pessoas são igualmente inteligentes, igualmente criativas, e as convido, inspiro, na direção desse projeto comum. Portanto, estamos convidando a uma mudança de era – passar da era da liderança para a era da colaboração e da co-inspiração em um projeto comum.
IE: Quem são esses tipos de Homo sapiens dos quais vocês falam?
Ximena: Há o Homo sapiens no sentido zoológico. Falamos em Homo Sapiens-Amans amans, Homo sapiens-Amans agressans e Homo Sapiens-Amans arrogans. Porque dizemos Homo sapien- Amans Amans? Porque nascemos como seres amorosos. Quando o chamamos de Agressans, ou uma pessoa que é agressiva numa relação, ela nasceu agressiva ou se transformou em agressiva pela cultura que viveu? Ela nasceu amorosa, como todos. E se transformou em um Homo sapiens-Amans agressans pelo modo de vida. E se transformou em um Homo Sapiens-Amans arrogans pelo modo de vida. Mas nasceu amoroso, da mesma maneira que nascem todos os seres humanos.
Maturana: Homo Sapien- Amans amans tem a ver com a origem do humano, com o conversar, com o que faz isso possível. No olhar zoológico, se fala do Homo sapiens, um ente zoológico. Estamos falando de um ente zoológico-psíquico, zoológico-relacional. É um animal que se constitui na história na conservação da linguagem e do conversar. E a emoção que faz com que seja possível que isso aconteça, na história evolutiva, é o prazer de estar junto, porque para que a linguagem surja, se requer permanecer na companhia dos outros.
Fonte: Fátima Cardoso 08/07/2009