Quem tem poder para conter a miséria e melhorar a educação não são os governos, mas os inovadores, afirma o especialista canadense em Terceiro Setor.
Os últimos 20 anos testemunharam a explosão no mundo das organizações não-governamentais, as ONGs.
Em países como Estados Unidos, Canadá e Índia, o número de ONGs aumentou mais de 50% nas últimas duas décadas. No Brasil, essas organizações passaram de 250 mil, em 1990, para 400 mil, em 2006.
Um grande estudioso – e entusiasta – do fenômeno é o jornalista canadense David Bornstein, autor de Como Mudar o Mundo – Empreendedores Sociais e o Poder das Novas Idéias (Editora Record). Guru do Terceiro Setor, formado por instituições privadas dedicadas a causas sociais ou ao bem público, Bornstein entrevistou para o livro dirigentes de ONGs no mundo inteiro.
Entre eles dois brasileiros. O engenheiro agrônomo Fábio Rosa, que, em 1982, criou um projeto para levar eletricidade a comunidades pobres. E a médica carioca Vera Cordeiro, que, em 1991, ao descobrir um garoto sem cobertores em casa após sair do hospital, iniciou o projeto Renascer, para dar assistência a crianças pobres depois da alta hospitais públicos. Os dois são exemplos do que Bornstein chama de empreendedor social, ou “gente com novas idéias para enfrentar grandes problemas, incansáveis na busca de seus ideais”.
Segundo Bornstein, os empreendedores sociais são tão importantes para uma sociedade quanto os capitalistas para a economia. Ele também é um defensor de uma tese polêmica: os governos devem se limitar à definição de políticas sociais. E transferir sua execução para as ONGs desses empreendedores. Elas podem ser mais ágeis e menos assistencialistas, funcionando com padrões de eficiência do mercado. “Os empreendedores sociais são mais eficientes em inovar”, afiram Bornstein.
ÉPOCA – No Brasil, a visão convencional é que resolver problemas sociais é primordialmente uma tarefa do governo, que arrecadam impostos para isso. O senhor é contra essa idéia. Por quê?
David Bornstein – Essa idéia não é só comum no Brasil, mas também na França e em países da Europa. Nos Estados Unidos, sempre houve uma visão de que o papel do governo deveria ser menor. Historicamente, o cidadão tem sido mais forte que o governo americano. Essa é uma das razões pelas quais as ONGs são dominantes nos EUA. Mas, globalmente a questão que começa a se impor não é quem deveria fazer o trabalho, mas quem pode fazê-lo melhor.
ÉPOCA – Em que as ONGs são melhores que os governos?
Bornstein – Pense em alguém que trabalhe para uma agência de governo. Emocionalmente, o mais importante pra essa pessoa é permanecer no poder. Talvez ela faça um bom trabalho, mas o mais importante é criar uma aparência de sucesso para permanecer no poder. É um trabalho de marketing, não de soluções de problemas. Marketing e sucesso social são tarefas inconciliáveis. Por isso, os governos tendem a ser medíocres e estão falhando em tarefas estruturais e previsíveis. Além disso, nunca foram e nem serão inovadores.
Os empreendedores sociais são mais eficientes em desenvolver novas idéias na aplicação de recursos.
ÉPOCA – O senhor que a área social deve funcionar com a mesma lógica do mercado?
Bornstein – Governos, em minha opinião, deveriam ser como estufas. Ao governo, caba dizer qual é a política de saúde, educação, identificar soluções, investir nelas e também legitimá-las. E também criar o ambiente para que os empreendedores sociais, que sabem construir essas soluções possam crescer. É como perguntar a bancos de investimento por que eles não começam negócios. Eles dirão: “Não somos bons em criar negócios, somos bons em investir em negócios e encontramos os empreendedores certos”. Os governos, da mesma forma, devem promover as boas organizações sociais para que continuem servindo o bem público. Como no setor privado, há companhias que não se comportam bem, como a Enron, e que o governo as tira de operações. Mas há muito mais empresas eficientes que ineficientes.
ÉPOCA – Mas a prioridade das pessoas no capitalismo é abrir negócios e ganhar dinheiro. Por que elas passariam a usar seu conhecimento e potencial empreendedor para investir em iniciativas sociais?
Bornstein – Os verdadeiros empreendedores são apenas parcialmente motivados por dinheiro. Sua principal motivação é transformar uma idéia em realidade, construir algo. Hoje, há diversos empreendedores investindo em ações sociais porque apostam que é uma oportunidade para construir coisas de que o mundo precisa. Eles ainda têm autonomia, liberdade e o prazer de criar algo e ver coisas construídas com o próprio trabalho. A meta do empreendedor não é maximizar lucros, mas satisfação pessoal.
ÉPOCA – Bill Gates e Warren Buffett doaram bilhões de negócios para a caridade. Eles são bons exemplos de empreendedores sociais?
Bornstein – Warren Buffett é um tremendo empreendedor no mundo dos negócios, mas é um filantropo, não um empreendedor social. Um filantropo é alguém que investe em um bom projeto ou em uma boa idéia criada pro um empreendedor social. Já o empreendedor social é inovador, cria idéias, une uma equipe e uma organização em torno do projeto. Até recentemente, eu considerava Bill Gates um filantropo. Mas sua fundação está reinventando a filantropia pela escada com que trata os problemas no século XXI. Ele está provocando uma mudança profunda na maneira de se tratar à saúde pública. Agora considero Gates um empreendedor social.
ÉPOCA – Por que no Brasil se fala tão pouco nos empreendedores socais em comparação com os Estados Unidos?
Bornstein – Pergunte a alguém em uma cidade brasileira sobre os empreendedores sociais. Ninguém tem idéia de quem são essas pessoas. Mas pergunte sobre a gangue que está aterrorizando a cidade e eles sabem o nome. Por que um é mais importante que o outro? Ambos estão mudando a cidade. Ainda há muita descrença em países que tiveram muita corrupção e ditadores. Quando você teve um presidente roubando milhões de dólares, como Fernando Collor, é fácil dizer que todo mundo rouba. Mas, se as pessoas conhecessem as histórias de 50 ou com empreendedores socais brasileiros, ficariam impressionadas. Se eu fosse um grande investidor empenharia meu dinheiro onde os empreendedores sociais atuam. O que eles fazem hoje determinará a sociedade em 20 anos.
ÉPOCA – O senhor imagina toda sociedade atuando em iniciativas sociais?
Bornstein – Esse é o poder do empreendedorismo. Você pode ter milhões de pessoas solucionando problemas. Todos têm o poder de criar uma solução. Basta o governo apoiar, a imprensa noticiar e, em dez anos acontecerá uma grande mudança. E, quando, as pessoas puderem usar seus talentos de forma criativa, contribuindo para a sociedade, serão muito mais felizes. É como Bill Gates e Warren Buffett. Não importa quanto você tem, importa quanto você pode contribuir para a sociedade.
ÉPOCA – O senhor acredita que só dinheiro não traz felicidade?
Bornstein – Hoje, as pessoas reconhecem as grandes limitações da riqueza. Vêem tanta riqueza na sociedade, mas tanta disparidade social também. Temos milhares de milionários no mundo, mas as taxas de depressão e suicídios estão crescendo. Temos muita riqueza e muita infelicidade no mundo ao mesmo tempo. Isso afeta as pessoas, porque elas descobriram que precisam de um sentido na vida para ser feliz. Os empreendedores sociais que entrevistei acreditam 100% nas mudanças que fazem.
FONTE: Revista Época de 24 de julho de 2006, páginas 44 e 45.
Entrevista – David Bornstein