Como o consultor Vicente Falconi ajudou a forjar a cultura de eficiência de empresas como AmBev e Gerdau – e se tornou o mais influente especialista do país em gestão de empresas e governos
Germano Lüders
Vicente Falconi de Campos, Orientador técnico da consultoria INDG
Às 6 e meia da manhã de 27 de janeiro de 2009, cerca de 15 membros dos conselhos de administração da AmBev e da ABInBev se encontraram no saguão de um hotel a poucas quadras da sede da AmBev, na zona sul de São Paulo. Vestidos com calça jeans e camiseta, eles estavam prontos para um ritual repetido após as reuniões de conselho desde os tempos da antiga Brahma — acompanhar a rota dos vendedores de cerveja. Antes de ir para a rua, todos assistiram à reunião de cerca de 40 minutos realizada pela equipe de vendas. Ali eles repassam as metas para o dia. Uma barulhenta batucada de tambores sempre soa para indicar a hora de sair. Durante quase 2 horas, cada um dos conselheiros acompanhou um vendedor pelo trânsito habitualmente caótico de São Paulo até chegar a bares e restaurantes espalhados pela cidade. O encontro foi um dos primeiros após a compra da americana Anheuser-Busch pela belgo-brasileira InBev, em novembro de 2008. Embora aparentemente despretensiosa, a rotina pretende aproximá-los de um aspecto fundamental da cultura da AmBev, cumprida à risca do presidente do conselho de administração até o vendedor — o management by walking around (conhecido como mbwa). Ou, em bom português, “gastar sola de sapato”. Para a cúpula da empresa, esse é o melhor jeito de conhecer de verdade aquela que é a razão de ser de qualquer negócio — o bom e velho mercado.
Para alguns dos participantes, tratava-se de algo novo — quase inusitado. Mas para nenhum deles, além dos próprios controladores da ABInBev — Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel Hermann Telles –, essas reuniões são tão rotineiras como para o consultor Vicente Falconi. Ele foi o primeiro forasteiro a compor o conselho da antiga Brahma, nos anos 90, participou das primeiras visitas a rotas e desde então cumpre o ritual de forma religiosa. Aos 69 anos, mais do que um veterano do conselho de administração da AmBev, ele é uma eminência parda por trás da cultura de eficiência da empresa. Ao lado das inúmeras referências que a AmBev incorporou a seu DNA, como a meritocracia do Goldman Sachs e o mbwa de Sam Walton, fundador do Walmart, existe a aparentemente inabalável obsessão pelo método gerencial desse senhor de cerca de 1,70 metro, cabelos brancos e jeito de vovô. A maior manifestação disso está no fato de que hoje cada um dos 120 000 funcionários da ABInBev no mundo tem metas — calculadas e checadas com uma disciplina de inspiração declaradamente nipônica, sob influência de Falconi. “Trouxemos a meritocracia para a AmBev, mas devemos a Falconi o método e a disciplina para colocá-la em prática”, afirma Telles.
Não há atualmente outro consultor brasileiro com o mesmo grau de influência que Falconi em grandes empresas do país. Ao longo de quase três décadas de carreira, ele vem oferecendo algo que seus clientes desejam com avidez cada vez maior — gestão. Falconi não orbita pelo glamour da estratégia. Sua promessa é ajudar as companhias a executar melhor aquilo que devem fazer. Apenas isso. Falconi e seus consultores não são pensadores. São operários. A consultoria que fundou ao lado do também ex-professor de metalurgia da Universidade Federal de Minas Gerais José Martins de Godoy — o Instituto de Desenvolvimento Gerencial, mais conhecido apenas como INDG — coordena hoje uma rede de quase 800 consultores e 450 clientes dentro e fora do Brasil entre grandes empresas e governos. É um exército que propaga conceitos de eficiência e melhoria contínua em empresas tão diferentes como o grupo ABC, de Nizan Guanaes, e a fabricante de papel e celulose Suzano, além dos governos dos estados de Alagoas e do Rio de Janeiro. A síntese de sua teoria está em seu novo livro, O Verdadeiro Poder, que chega às livrarias em dezembro e ao qual EXAME teve acesso antecipado (veja quadro ao lado). Seu prestígio se torna evidente na lista de “revisores” que coassinam a obra. São 14 empresários, como Carlos Alberto Sicupira, acionista da ABInBev; Fersen Lambranho, copresidente da GP Investimentos; Pedro Moreira Salles, presidente do conselho de administração do Itaú Unibanco; e Jorge Gerdau, presidente do conselho de administração da Gerdau. (Segundo Telles, uma tradução para o inglês deverá chegar às mãos dos 500 principais executivos da ABInBev no final deste ano.)
A princípio, pode surpreender como Falconi transformou algo sem charme aparente numa metodologia que desperta o interesse de tanta gente. Seus clientes o procuram para montar uma rotina de estabelecer, distribuir e cobrar metas. Uma analogia comum entre eles é que, após incorporado ao dia a dia, o método gerencial se torna tão corriqueiro como escovar os dentes. Muitos dos iniciados se referem a ele, com um tom quase maçônico, apenas como “o método”. Sua essência pode ser resumida na sigla PDCA, do inglês plan-do-check-act (“planeje, execute, confira e corrija”). Na origem, trata-se do que os americanos Joseph Juran e William Edwards Deming, considerados papas da qualidade total, pregaram nos anos 50 para reerguer a indústria japonesa no pós-guerra. “É uma metodologia absolutamente simples mas extraordinária em sua eficácia”, afirma Pedro Moreira Salles, do Itaú Unibanco.
Falconi e Godoy eram professores de metalurgia quando começaram a ouvir sobre métodos gerenciais aplicados no Japão, nos anos 80. Na época, os dois prestavam consultoria pela Fundação Christiano Ottoni, ligada à UFMG, para aumentar a produtividade de metalúrgicas e siderúrgicas. Por meio de um convênio patrocinado pelo governo brasileiro junto ao Juse (Sindicato Japonês de Cientistas e Engenheiros), ambos fizeram dezenas de visitas a empresas japonesas para aprender princípios do conceito da qualidade total e também receber delegações de executivos japoneses no país. O aprendizado de um tema praticamente inexplorado no Brasil lhes permitiu ampliar a gama de clientes do escritório de Belo Horizonte. (Um dos primeiros fora do eixo mineiro foi Jorge Gerdau, de quem Falconi logo se tornou amigo.) Desde o início, Godoy e Falconi dividiram entre si as tarefas. “Enquanto passei a me dedicar ao dia a dia da consultoria, Falconi se tornou coordenador técnico, com envolvimento mais direto com clientes”, afirma Godoy, presidente do INDG.
O primeiro contato com os controladores da antiga Brahma foi quase uma casualidade. No início dos anos 90, quando presidia a companhia, Marcel Hermann Telles procurou a então ministra Dorothea Werneck para obter um aumento nos preços — até então tabelados pelo governo. “Ela perguntou por que, em vez de só subir preços, eu não procurava os professores da Fundação Christiano Ottoni para investir em produtividade”, afirma Telles. “Nunca tinha ouvido falar deles, mas decidi ir até lá.” O encontro, porém, não resultou numa empatia imediata. “Uma das maiores dificuldades que Falconi teve no começo na Brahma foi lidar comigo e com o Magim (Magim Rodriguez na época diretor de marketing da empresa). Nós éramos atiradores, e ele propunha primeiro a análise da situação para só depois partir para a ação”, afirma Telles.
A adoção do método transformou a empresa quando chegou a todos os níveis da organização — e não apenas à área industrial. Ao longo dos anos 90, dezenas de diretores da antiga Brahma, inclusive o então diretor de marketing, Magim Rodriguez, chegaram a visitar o Japão para se aprofundar nas técnicas difundidas por Falconi e Godoy. No Brasil, outras centenas de executivos aprenderam em sala de aula o ciclo do PDCA e outros termos a princípio pouco amigáveis, como “gerenciamento por diretrizes”, que mais tarde se tornou base para a formação e o desdobramento de metas da companhia. “No começo, eu pensava: ‘O pau está comendo lá fora e eu aqui perdendo tempo’ “, diz Juan Vergara, executivo da AmBev entre 1996 e 2007 (seu cargo mais recente foi diretor de marketing) e atual sócio da Galícia Investimentos. “Nada foi mais convincente para que todos aceitassem o modelo do que os resultados. Com o tempo, planejar metas com disciplina virou algo corriqueiro, que ninguém mais pensava antes de fazer.” Em abril de 1997, Falconi passou a integrar o conselho da empresa. Em 2003, a AmBev já era conhecida como a cervejaria com os custos mais baixos no mundo.
Os primeiros anos de trabalho com a Brahma representaram, na verdade, um período de intenso aprendizado mútuo. “Sem essa experiência, não teria compreendido tão rapidamente a importância do viés financeiro. Hoje, todas as propostas do INDG possuem um objetivo ligado a um indicador financeiro”, afirma Falconi. “Estou convencido de que as métricas financeiras são as principais não só para empresas mas também para governos e até igrejas.”
A influência visceral entre as duas partes só aconteceu graças à convivência decorrente do estilo “mão na massa” da consultoria. No INDG, ninguém é especialista em setores. Todos entendem de aplicar o método gerencial. Para isso, acompanham até mesmo reuniões internas para cobrar resultados dos executivos das empresas clientes. Todos são estimulados a criar dentro das organizações o que Falconi chama de “cultura de enfrentamento”. “Em situações extremas, essa cultura significa apontar o dedo para quem não entregou o resultado”, diz o consultor Marconi Rocha, que passou parte dos últimos quatro anos disseminando a versão em cirílico do PDCA em operações da ABInBev na Rússia.
Trata-se de uma abordagem tão peculiar que exige a formação de boa parte dos consultores dentro de casa. Cerca de 70% dos 768 consultores do INDG começaram a carreira recém-saídos da universidade. Embora o INDG não tenha vínculos formais com a academia desde 1998, quando Godoy e Falconi deixaram de atuar dentro da Fundação Christiano Ottoni, muitas das analogias da formação de consultores ainda seguem a referência de uma universidade. (A começar pelo fato de que tanto Godoy quanto Falconi ainda são chamados de “professor” dentro e até mesmo fora do INDG.) O programa de trainee, que recruta cerca de 100 jovens por ano desde seu início, em 2003, tem o apelido interno de “mestrado”. O segundo nível da carreira, quando os consultores atingem o nível sênior (o que em geral acontece depois de cinco anos), é conhecido informalmente como “doutorado”. Para passar de um estágio a outro, os candidatos são submetidos a uma banca composta de três consultores experientes e precisam expor os resultados obtidos nos diversos projetos em que já se envolveram. “Embora exista uma metáfora com estágios acadêmicos, todo o treinamento dos jovens é voltado para a prática desde cedo”, diz Bruno Maldonado Turra, diretor de desenvolvimento e apoio ao negócio do INDG.
Em geral, os melhores vendedores da consultoria são seus próprios clientes. Um exemplo disso é a aproximação de Pedro Moreira Salles, presidente do conselho do Itaú Unibanco, com Falconi. Antes de contratá-lo, o banqueiro viajou a Porto Alegre para conversar com Jorge Gerdau e, depois, visitou a sede da AmBev para falar com Marcel Telles. “Fiquei convencido quando vi os resultados”, diz Moreira Salles. Antes que os primeiros consultores do INDG pisassem na sede do banco, ele tratou de providenciar uma apresentação convincente para seus diretores — para evitar resistências. Em 2007, reuniu seus 120 principais executivos do Unibanco na época para ouvir o depoimento pessoal de Gerdau e de Telles durante uma manhã. Mais tarde, os próprios resultados começaram a despertar a confiança entre eles. Apenas no primeiro ano de consultoria, o banco economizou mais de 200 milhões de reais com a aplicação do conceito de orçamento matricial, em que se comparam gastos semelhantes em diferentes áreas para identificar distorções. Os resultados — e a dedicação — levaram ao convite para que Falconi passasse a integrar o conselho de administração do banco, em 2008 (com a fusão com o Itaú, o consultor deixou o posto).
“Ele trazia as discussões do conselho de volta para o mundo concreto”, afirma Moreira Salles. Uma das situações que o marcaram nesse sentido ocorreu numa apresentação de um diretor a respeito do bom desempenho do call center do banco. Depois de meia hora de discurso sobre as qualidades do serviço, Falconi disse: “Não estou aqui para saber o que está indo bem. Só posso ajudar se você me disser quais são seus problemas”. “Ele não se esconde por trás de discursos supostamente sofisticados”, diz Moreira Salles.
O mais novo e amplo campo de provas para as ideias de Falconi é o setor público. Uma das primeiras experiências dele nessa seara aconteceu em 2001, a convite do então ministro do Planejamento Pedro Parente. Parente conhecera o consultor poucos anos antes, numa palestra em Brasília sobre gerenciamento por diretrizes. “Fiquei maravilhado com aquele negócio”, diz Parente. Ele conta que, quando recebeu a tarefa de gerenciar o apagão de energia, logo pensou em chamá-lo para compor o comitê gestor da crise. “Para resolver o problema, precisávamos basicamente distribuir metas para todos os cidadãos”, diz. A colaboração de Falconi, segundo Parente, foi clara na hora de eleger apenas um único indicador facilmente compreensível — nesse caso o nível de água dos reservatórios das usinas hidrelétricas. A outra foi na hora de determinar o desdobramento de metas por família. Quem consumia abaixo de 100 quilowatts por mês recebia um “bônus” de 2 reais para cada real economizado. (Um dos entusiastas do “método”, Parente contratou os serviços do INDG assim que assumiu o cargo de presidente da RBS, em 2002. Para meados de dezembro, na passagem do comando para seu sucessor, Eduardo Sirotsky Melzer, Parente marcou uma reunião que deverá tomar uma manhã inteira para apresentá-lo a Falconi.)
Nada se compara, no entanto, à escala de novos projetos resultantes de uma espécie de peregrinação pelos estados organizada por Jorge Gerdau, presidente-fundador do Movimento Brasil Competitivo, e por Beto Sicupira, criador da Fundação Brava. Ao longo de 2007, os três partiram em inúmeras visitas a políticos eleitos — incluindo o presidente Lula e uma série de governadores de norte a sul do Brasil. Nesse triunvirato, Gerdau abre as portas e Sicupira ajuda a arrecadar dinheiro junto a empresários dispostos a patrocinar o trabalho da consultoria. Falconi entra com seus consultores, hoje distribuídos em oito estados brasileiros, cerca de 40 municípios, além do Ministério do Planejamento. Em todos os casos, os resultados são acompanhados em reuniões trimestrais entre as equipes dos governos e o grupo de patrocinadores, como o banqueiro Gilberto Sayão e Paulo Cunha, do grupo Ultra. Apenas no primeiro ano, o estado do Rio de Janeiro reverteu um déficit de 102 milhões de reais em 2006 num superávit de 795 milhões de reais em 2007. “Hoje temos entre 80 e 90 reais de retorno por cada real aplicado nesses projetos”, afirma Gerdau. “É uma mina de ouro sob nossos pés se soubermos aplicar conceitos de gestão.”
Às vésperas de completar 70 anos, Falconi tem se tornado mais seletivo com relação aos projetos a que se dedica pessoalmente. Em outubro, por exemplo, deixou um assento no conselho de administração da Brasil Foods (após sete anos como conselheiro de administração da Sadia, Falconi foi o único a ser convidado por Furlan e Walter Fontana para ocupar a terceira das três cadeiras no conselho da BRF que lhes couberam). Ele mantém, porém, o hábito de acordar todos os dias às 4 e meia da manhã para pensar a respeito de novas ideias ou reler seus livros favoritos. Um dos novos projetos, afirma, é um projeto para desenvolver um sistema meritocrático para promoção de funcionários públicos no estado do Rio de Janeiro.
Outro assunto que tem tomado seu tempo é preparar a própria sucessão. O ponto de partida para tanto aconteceu em 2006, com a assinatura de um acordo de acionistas entre ele e Godoy (que juntos dividem meio a meio 100% das ações ordinárias da consultoria). Pelo contrato, os dois devem deixar as atividades operacionais do INDG em abril de 2010. Na prática, como orientador técnico, Falconi já está afastado da maior parte dos projetos. Também prestes a completar 70 anos, Godoy ainda controla boa parte da operação. Há dois anos, eles contrataram a consultoria de recrutamento Egon Zehnder para encontrar o sucessor para a ocupar a presidência. “Interrompemos o processo por causa da crise”, afirma Godoy. “Mas já recontratamos a Egon Zehnder recentemente.” Alguns executivos próximos à empresa, no entanto, afirmam que Godoy se negou a deixar o cargo e decidiu deliberadamente adiar a própria sucessão. Neste ano, dois dos consultores que internamente eram vistos como possíveis candidatos à presidência deixaram a consultoria — Otto Levy, que se tornou diretor da Magnesita, e Aloísio Carvalho, que foi para a Gerdau. A demora no processo de sucessão também teria gerado desentendimentos entre Falconi e Godoy — que, segundo executivos próximos, deixaram de se falar nos últimos meses.
Ambos negam as desavenças e afirmam que o plano de sucessão está sendo seguido. “Adiantamos a meta de distribuição de ações preferenciais entre os consultores”, diz Godoy. “A partir de 2010, vamos começar a distribuir as ações ordinárias.” O acordo de acionistas determinava a distribuição de 20% das ações preferenciais da companhia entre os consultores — um patamar que já foi atingido neste ano. Agora, pelas regras do estatuto, todas as ações ordinárias devem estar nas mãos dos funcionários do INDG até 2020. A eficiência em transferir o controle para as novas gerações será determinante para a perenidade da consultoria — um assunto que os clientes estão acompanhando de perto. Em parte, isso explica o apoio deles ao lançamento do novo livro de Falconi. E até mesmo a participação de alguns deles, como Jorge Gerdau, Marcel Telles e Beto Sicupira, no conselho de administração do INDG. “O trabalho dos professores Falconi e Godoy é um legado para o Brasil”, diz Beto Sicupira. A boa notícia é que esse legado já deixou marcas aparentemente irreversíveis numa geração de empresários e políticos do país.
Por Cristiane Mano | 26.11.2009 | 00h01