Lia Diskin
A proposta de nossa reflexão sobre o Diálogo entre as Civilizações está inserida num contexto histórico que retrata, de maneira singular, a falta de contornos claros para os valores que arquitetaram nossa cultura. O século XX, que estamos deixando, conseguiu reunir mais informações que todos os séculos precedentes juntos, mas este fantástico acúmulo de conhecimentos auferidos não encontrou um espaço temporal suficiente para ser corretamente processado. Sabendo cada vez mais, fomos tornando-nos cada vez menos seguros das certezas que possuíamos, dando lugar às ambigüidades de condutas e conteúdos. Os princípios, propósitos e valores que norteavam nosso agir deixaram de possuir a mesma clareza de significados: tornaram-se contraditórios e foram instalando o mal-estar existencial.
Para ilustrar esta situação, e a título de exemplo no campo da Estética, as gravuras do artista gráfico holandês Maurits Cornelis Escher (1898-1972) retratam bem esta situação fronteiriça, desafiando nossa percepção da realidade. Na obra intitulada Paraíso e Inferno, o destaque é dado -dentro de um círculo monocromático onde tudo é foco, sem fundo- a uma série ininterrupta de figuras que se entrelaçam, sendo umas os limites e contornos das outras. Anjos e demônios, em tensão recíproca, rodopiam em círculos concêntricos sem deixar espaços, a não ser o da perplexidade. Sem os hiatos que a reflexão requer. Do necessário silêncio para tomar fôlego e ordenar a realidade em volta, esta obra quebra o ritmo das diástoles e sístoles, do côncavo e do convexo, onde temos habitado por tanto tempo, e onde todos tínhamos nossos próprios domínios, permitindo-nos entender o que considerá vamos ser o mundo.
Tudo parecia tão simples: era questão de separar, distinguir, segregar, classificar, incluindo ou excluindo. Usar espaço e tempo para fazer as distinções necessárias. Mas nosso mundo assim “ordenado” esfacelou-se abruptamente, e já não sabemos onde colocar fronteiras que dividam claramente os objetos da realidade nem do imaginário.
O que sabíamos através de nossos mapas mentais já não corresponde à realidade. Os contornos, cuja representação servia de maneira provisória para domesticar a imensidão de um universo indescritível, deixaram de ter utilidade. O que era definitivo e permanente ganhou fluidez, e o que era fluído e fugaz adquiriu pétrea consistência. O saber que humanizava nossa permanência no mundo se transformou por sua vez em um não saber a que nos ater. Assim, recuperar significados para os novos desafios do presente exige também recuperar valores e, por este caminho, estabelecer novas premissas que propiciem fecundidade na absoluta necessidade de um Diálogo entre Civilizações.
MAPAS DA PAZ
As respostas aos desafios de cada época constituem o repertório de valores que orientam as atitudes dos homens com o mundo. Estes códigos absorvem ou rejeitam as contribuições do passado, mas é deste que se alimentam.
Com fins ilustrativos, citarei três cartografias ilustrativas do conceito de Paz. A primeira delas provém do Eclesiastes, pequeno livro sapiencial do Antigo Testamento, cuja composição data provavelmente do século III a.C. Nele, o autor aborda a vaidade que acompanha os feitos humanos, e indaga sobre o real sentido das coisas:
“Há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu. Tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar a planta. Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de destruir, e tempo de construir. Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de gemer, e tempo de dançar. Tempo de atirar pedras, e tempo de recolher pedras; tempo de abraçar, e tempo de se separar. Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de jogar fora. Tempo de rasgar, e tempo de costurar; tempo de calar, e tempo de falar. Tempo de amar e tempo de odiar; tempo de guerra e tempo de paz”.1 Eclesiastes 3: 1-8
Nesta sucessão de pares opostos mediados pelo tempo é a própria concepção do tempo que dá lugar aos significados. Não há como se subtrair -na compreensão do autor do Eclesiastes- ao ciclo repetitivo e incessante do tempo, que tudo gera e tudo engole, com absoluta indiferença pela diferenças. Esta é a razão que levou ao Rabino Harold Kushner considerá-lo “o mais perigoso livro de toda a Bíblia”2. Entretanto, o código cultural que origina o modelo organizador do autor do Eclesiastes, é comum a muitas experiências históricas, onde a paz é vista como um hiato entre as guerras. Um repouso entre conflitos, período de ausência de confrontos e, a respeito dos quais, pouco ou nada podemos fazer -além de aceitá-los como fatalidades iniludíveis, como compassos na música orquestrada consecutivamente pela ordem e pelo caos que regem a existência. Este primeiro exemplo reafirma a crença num destino inamovível, que exige uma aceitação passiva e ante o qual nada podemos fazer.
Uma outra cartografia pode ser encontrada no pensamento de Cícero, político e filósofo romano do último século antes de Cristo, que recebeu influências de várias escolas filosóficas e, por isso mesmo, considerado um eclético. Sua maior contribuição foi a de ter introduzido e divulgado a cultura grega entre os pensadores de seu tempo, incitando seus conterrâneos a refletir e discutir sobre as questões públicas, isto é, sobre a política e as formas de governo.
Afirmando que “A Paz é o exercício da liberdade tranqüila”3, põe em relevo duas dimensões que se retroalimentam: a práxis como liberdade, e esta como fruto da primeira. Entretanto é importante observar, que para haver liberdade têm que existir as condições de exercê-la; se as escolhas possíveis estão fora do alcance ou são ocultadas de maneira deliberada e, ainda, se a possibilidade de escolha apresenta-se manipulada, seja por intimidação ou por sedução, induzindo a uma das alternativas, a liberdade, simplesmente, inexiste. A prática e a familiaridade com as conseqüências que acarretam as escolhas são o que nos permite ampliar o repertório das mesmas, criando possibilidades de novas liberdades.
Nem sempre podemos escolher o que fazer ou deixar de fazer, mas sempre podemos escolher como fazer ou não fazer. Esse “como” pertence ao âmbito da subjetividade, da qualidade ou atitude que imprimimos nas ações e, conseqüentemente, na nossa vida. Neste exemplo podemos observar o início de um conceito de autarquia em relação à sina, fado ou de stino que governa o mundo.
A terceira cartografia está presente na constituição da Organização das Nações Unidas: “Os governos dos Estados Membros, em nome de seus povos declaram: Que posto que as guerras nascem na mente dos homens, é na mente dos homens que devem erigir-se os baluartes da Paz….”, sinalizando a origem e a raiz dos conflitos e a necessidade peremptória de mudar de rumo, tomar outra direção e, por esta mudança no sentir, pensar e conviver, assumir um repertório de valores capazes de exaltar a Vida; de respeitar as diferenças como fonte de riqueza e ampliação da compreensão da realidade; de valorizar a convivência fortalecendo os vínculos de confiabilidade mútua; de minimizar o impacto predatório sobre a natureza; de promover o usufruto, por parte de todos, dos bens culturais e materiais conquistados; de partilhar possibilidades e responsabilidades; de assumir, em fim, que o bem-comum está acima de interesses particulares ou de grupos.
Esta mudança fundamental que parte da compreensão da origem mental dos conflitos é, por sua vez, um apelo para se construir um programa de educação para a Paz. Nesse sentido, duas contribuições relativamente recentes não podem deixar de ser citadas. Uma delas, Os Sete Saberes Necessários à Educação de Futuro, de Edgar Morin, propondo um verdadeiro pacto entre a condição humana e a cidadania planetária, reconhecendo a fragilidade e fugacidade das nossas verdades quando desvinculadas dos contextos biológicos, antropológicos, cognitivos e históricos que lhes deram origem. A segunda contribuição é o Relatório Jacques Delors para a UNESCO, da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, no qual podem ser destacados quatro pilares do conhecimento: Aprender a conhecer; Aprender a fazer; Aprender a viver juntos, e Aprender a ser, como caminho para uma visão integradora do humano, resgatando as dimensões intra e interpessoais, e cujo esquecimento tem provocado grande parte da exclusão e das desigualdades sociais que nos assolam.
AS CULTURAS SOLIDÁRIAS
Une-se a este esforço reparador a voz da historiadora Riane Eisler, que analisa os fundamentos da nossa herança histórica permeada pelo triunfo das culturas de dominação, que chegaram a Europa aproximadamente faz 4.000 anos atrás, devastando comunidades organizadas e orientadas solidariamente. A cultura de Creta é um exemplo deste tipo de organização: “toda a vida estava impregnada de uma fervorosa fé na deusa Natureza, fonte de toda criação e harmonia. Isto resultou em amor à Paz, horror à tirania e respeito pelas leis. Mesmo entre as classes governantes parece não ter havido ambição pessoal; em nenhuma obra de arte encontramos o nome do autor, nem registros das façanhas dos governantes”.4
As culturas solidárias que existiram no passado contestam a afirmação generalizada de que a guerra, a apropriação, a competição e o controle são os sinais característicos do modo de estar no mundo de nossa espécie. Mitos, epopéias, contos populares e páginas da história, penosamente reconstruídas, nos falam de um tempo onde a igualdade entre os sexos foi norma geral; as responsabilidades partilhadas criavam comunidades prósperas e seguras; as riquezas não eram acumuladas por governantes mas investidas em benfeitorias para todos; o trabalho, motivo de orgulho e satisfação.
No Sudeste Asiático, antes das migrações dos indo-europeus, já havia complexos culturais de grande desenvolvimento e requinte como Mohenjo-Daro, Harappa e Kot Diji. Neles, as cidades foram planejadas sem muros e seus restos arqueológicos nos mostram a existência de imensos silos nos quais se guardavam grãos de estação para estação. Havia coleta de águas pluviais e sistemas de irrigação; a arte em argila e metal havia alcançado requintes impressionantes, sendo os motivos mais freqüentes figuras dançantes, divindades da natureza indicativas da celebração da Vida e da fecundidade.
SINTOMAS DO DESACERTO
O Professor Phillip M. Harter, da Universidade de Stanford, compilando pesquisas de organismos internacionais, fez um diagnóstico planetário da nossa situação em 1999. Formulando a pergunta “Se o mundo todo fosse concentrado num único quarteirão urbano com 100 moradores, como seria?” O resultado conclui que constaria de: 57 asiáticos; 21 europeus; 14 seriam do continente americano; 8 africanos (guerras, fome e AIDS podem reduzir esse número); 52 seriam mulheres; 48 homens. Deles 70 seriam não-brancos; 70 não-cristãos; 70 analfabetos; 80 pobres; 50 beirando a inanição. Teríamos apenas 1 universitário usuário de microcomputador.
Este quadro assustador está complementado por inúmeras pesquisas e seus respectivos diagnósticos. Todas elas mostram uma situação que se agrava dia após dia. Sabemos também, que nos vamos acostumando lentamente a ela, como se fosse um mal degenerativo para o qual não temos medicamentos. O desalento, o sentimento de impotência, a apatia vão ganhando adeptos, que logo imobilizam.
Mas ainda restam antídotos, e eles chegam através de muitas vozes. Entre elas a de Gandhi, o mais inusitado líder do século XX. Ele nos deixou uma nova cartografia da Paz, incompleta, rascunhada como costumava dizer, porém a mais significativa contribuição à história da não-violência.
Segundo Gandhi a perpetuação de um regime ou situação injusta depende de cooperação, obediência e consentimento por parte de um povo, grupo ou pessoa. O agredido alimenta o agressor submetendo-se a ele. A via para mudar essa relação é auto-educar-se, isto é: não-cooperar com a injustiça, não-cooperar com a indignidade, não-cooperar com a humilhação. Criar células de resistência não violenta, fortalecer-se e logo denunciar publicamente a iniqüidade com o único propósito de dissuadir o adversário e torná-lo um aliado. Muitos de seus oponentes, tanto indianos quanto membros do governo britânico, converteram-se não só em amigos pessoais como também em colaboradores próximos, o que reafirma que a ação deve estar dirigida contra a agressão e nunca contra o agressor.
Entretanto, é bom lembrar, Gandhi usou este método não só para libertar seu povo do domínio britânico, mas igualmente para erradicar mazelas dentro de sua própria tradição e comunidade. O sistema milenar de castas que dividia a sociedade, legitimando direitos para alguns e negados radicalmente para outros, constituíam o exemplo mais brutal de segregação dentro desse sistema, que Gandhi condenou reiteradamente, organizando mobilizações não violentas para lhes garantir direitos e dignidade.
Uma delas foi a de Vykom, no sul da Índia, governada por um marajá indiano que, seguindo um costume secular, proibia os intocáveis de usar um caminho particular que conduzia ao seu vilarejo porque ele passava frente a um templo brâmane ortodoxo. Hinduístas ilustrados uniram-se aos intocáveis e postaram-se frente ao templo, pedindo autorização para utilizar o caminho. Foram atacados com pedras e golpeados, alguns levados a prisão onde receberam sentenças de um ano por crime de desacato à lei.
Progressistas da Índia toda acudiram à localidade e organizaram-se em grupos de revezamento para orar, dia e noite, em busca de uma solução justa. Após dezesseis meses de manifestações não violentas os intocáveis ganharam o direito de passagem. A notícia deste feito espalhou-se no país, onde novos grupos inspirados nesse método ganharam força para reivindicar ações reparadoras. Em 1947, por decreto constitucional, o sistema de castas foi definitivamente abolido.
O mapa gandhiano, de cunho essencialmente pedagógico, pode traduzir-se em uma única sentença: “Não há caminho para a Paz, a Paz é o caminho” e esta deveria ser a orientação fundamental de todo Diálogo entre Civilizações.
1 [O grifo é nosso] Eclesiastes 3:1-8, A Bíblia de Jerusalém, Ed. Paulinas, São Paulo, 1987, pp. 1169-1170
2 Quando Tudo não é o Bastante, Harold Kushner, Nobel, São Paulo, 1987, p. 20
3 Filípicas, 2, 44, 113, Cícero
4 El Caliz y la Espada, Riane Eisler, Cuatro Vientos, Santiago de Chile, 1991, p. 41