Aos moldes de estatutos como o do Idoso ou da Criança e do Adolescente, qual seria a pertinência real de um novo conjunto de leis para disciplinar as relações jurídicas do terceiro setor? A questão é o ponto inicial do trabalho realizado pelo Instituto Pro Bono, coordenado pelo professor-doutor de Direito Administrativo da USP, Gustavo Justino de Oliveira.
O projeto tem duração total de seis meses e possui dois eixos estruturantes. O primeiro, em uma pesquisa sobre o marco legal para o terceiro setor no Brasil, em comparação aos EUA e alguns países da Europa – Itália, França, Espanha, Portugal e Inglaterra. Já em segundo, a realização de seminários focais pelo Brasil para discutir o tema, unindo sociedade civil organizada, governo, setor privado e academia.
Com base nessa interlocução, o Instituto Pro Bono e o representante da USP esperam criar uma minuta de anteprojeto de lei (isto é, as diretrizes básicas do projeto definitivo de uma lei) para análise do Ministério da Justiça. “Angariamos informações, dados e depoimentos com representantes de entidades pertencentes ao terceiro setor, representantes do Poder Público e a sociedade civil sobre a relevância do setor e a necessidade de sua regulação. Trata-se de um trabalho científico, cuja adoção dependerá exclusivamente do Ministério”, explica Oliveira.
Contexto da Ação
Todo o trabalho de Gustavo Oliveira e do Instituto Pro Bono, no entanto, faz parte de um programa maior, liderado pela Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL), órgão do Ministério da Justiça, e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), chamado “Pensando o Direito”. A iniciativa tem como objetivo estreitar os laços com a academia e qualificar a Secretaria em seu trabalho de elaboração normativa.
Iniciado em 2007, o “Pensando o Direito” já realizou pesquisas em nove áreas temáticas: Direito Ambiental, Direito do Consumidor, Direitos Humanos, Direito Urbanístico, Federalismo, Observatório do Judiciário, Penas Alternativas, Propriedade Intelectual, Reforma Política e Direito Eleitoral. Basicamente, a idéia era a de que uma universidade propusesse um projeto de pesquisa sobre determinada temática e depois apresentasse um relatório ao SAL.
“Essas áreas foram consideradas importantes para o Ministério. São temas complexos mesmo nos debates acadêmicos, que podem demorar anos para chegar a consensos. Se nas universidades é assim, imagina do dia-a-dia da secretaria?”, acredita Rafael Alves, da Secretaria de Assuntos Legislativos.
Segundo ele, o êxito da experiência motivou o lançamento de uma nova edição da iniciativa, no início de 2008, realizada em duas etapas. A primeira teve como foco os eixos de Direito Penal e Processual Penal e de Direito Constitucional e Eleitoral. Já a segunda inclui oito áreas temáticas em diversos campos do Direito: Conselho Tutelar, Vítimas de Violência, Conflitos Coletivos sobre a Posse e a Propriedade de Bens Imóveis, Sucessão – Companheiros e Cônjuges, Grupos de Interesse (lobby), Estatuto dos Povos Indígenas, Estado Democrático de Direito e Terceiro Setor, Igualdade de Direitos entre Mulheres e Homens.
“O financiamento desses projetos tem como fim o estímulo à pesquisa jurídica no país. E, nessa questão, as faculdades estão muito isoladas, seja com a sociedade civil organizada, governos ou empresas”, argumenta Alves.
Conceituação
Uma das primeiras ações para o trabalho do Instituto Pro Bono e a USP, após serem selecionados para participar com o projeto “Estatuto Jurídico do Terceiro Setor – pertinência, conteúdo e possibilidades de configuração normativa”, foi a de realizar um encontro em São Paulo, em parceria com o Centro Acadêmico “XI de Agôsto”, da Faculdade de Direito da USP.
Na ocasião, participaram cerca de 60 lideranças de entidades sociais, representantes do poder público e estudiosos da academia, para dar as impressões iniciais sobre a necessidade de um estatuto. A primeira questão a que se chegou nas palestras foi a da indefinição sobre o termo: o que afinal é terceiro setor?
“Não temos uma definição jurídica sobre o termo. Há poucos estudos em direito sobre isso. Definir o que é terceiro setor é o primeiro passo para desburocratizá-lo”, exclamou a presidente da Comissão de Direito do Terceiro Setor da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, Lucia Maria Bludeni Cunha.
Para o coordenador do Centro de Estudos do Terceiro Setor da Escola da Administração de Empresas (Eaesp), Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, Luiz Carlos Merege, a metodologia elabroada pelo Centro de Estudos da Sociedade Civil da Universidade Johns Hopkins, em 2002, não é mais o suficiente.
Apesar dessa lógica conceitual basear o Manual sobre Organizações Não Lucrativas do Sistema de Contas Nacionais da Organização das Nações Unidas – que passou a ser um referencial para as pesquisas que desde então são realizadas sobre o terceiro setor -, segundo Merege, ela não abarca a heterogeneidade das práticas pelo bem comum.
“Há uma série de iniciativas promovidas por organizações informais, que não estão no bojo de associações, fundações, entidades etc, que fazem parte da lista que compõe o terceiro setor registrada pela ONU”, argumenta.
A presidente da Associação Paulista de Fundações, Dora Silvia Bueno, também apresentou considerações contundentes sobre o tema. “Se a definição de terceiro setor se afirma no seu objetivo, que é a defesa dos direitos sociais, é preciso rever porque condomínios e clubes esportivos, organizações de origem privada, usufruem dos mesmos benefícios que algumas entidades de assistência”, questionou, evidenciando certa confusão jurídica sobre o setor no Brasil.
Insegurança Jurídica
Uma das conclusões mais unânimes do evento é que o Brasil possui uma legislação para o terceiro setor fragmentada, contraditória e conflituosa. A situação torna-se ainda mais negativa quando analisada a conturbada relação entre sociedade civil organizada e governo, que trabalha, muitas vezes, de forma ambivalente, ora concedendo imunidades e isenções, ora cancelando-as de forma arbitrária.
Um dos exemplos mais vistosos sobre o assunto pode ser encontrado no Art. 62 do Código Civil, que legisla sobre a criação de uma fundação, especificando o fim a que se destina. Em parágrafo único, legitima: “a fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos, morais, culturais ou de assistência”.
O questionamento dessa legislação é simples: se uma fundação atua para a educação, saúde ou meio ambiente, em que fim ela se identifica. Para os convidados do encontro em São Paulo, essa é apenas umas das pérolas de conflitos, porque, as organizações de educação, saúde ou meio ambiente se registram na área cinzenta dos fins “morais”.
Essa conceituação, no entanto, está a cargo do Ministério Público, que, na pessoa do Curador de Fundações, pode interpretar de forma diferente essa situação. O que, no fim, impede o trabalho da Fundação por uma tecnicalidade.
Para Márcia Pelegrini, membro do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, a instabilidade jurídica é para todos. “O controle que é feito traz insegurança não apenas para a entidade, mas para quem faz o controle”, lembrou. Ela afirma que os técnicos do Ministério Público, ou mesmo do Tribunal de Contas, passam por dificuldades na hora de analisar a situação de organizações sociais, graças às rotineiras mudanças nas regras.
Márcia defende, por exemplo, a consolidação do marco legal do terceiro setor, que sistematizaria a legislação existente. “Quando se fala em instrução, decreto ou portaria, é sempre traumático para ambos os lados (organizações sociais e técnicos da administração pública)”, criticou.
Dados
Para entender o peso do setor, é preciso analisar seus números. Entre 2002 e 2006, o número de fundações privadas e associações sem fins lucrativos cresceu 22,6%, passando de 276 mil para 338 mil. Comparativamente, o número é tímido em relação ao período de 1996 e 2002, quando o crescimento dessas organizações sociais foi de 157% (105 mil para 276 mil).
Os dados são da segunda edição da pesquisa As Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos no Brasil (Fasfil). O levantamento foi realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o GIFE e a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong).
Os dados utilizados são do Cadastro Central de Empresas (Cempre) do IBGE para o ano de 2005, que cobre o universo das organizações inscritas no CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). O ponto de partida do processo foi selecionar, no Cempre, as entidades qualificadas como sem fins lucrativos.
Resultados
Embora as conclusões do encontro em São Paulo tenham tendido para a não criação de um Estatuto Jurídico para o Terceiro Setor, ficou clara a necessidade de mudanças no marco legal. Há, assim, uma prerrogativa pelo aperfeiçoamento e consolidação das leis já existentes.
O Instituto Pro Bono espera apresentar a proposta à Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em abril de 2009. “Privilegiaremos a participação por meio dessas consultas públicas nos próximos seis meses (cinco meses)”, garante Marcos Roberto Fuchs, presidente do instituto.
Fonte: Gife Online
20/10/2008